quinta-feira, 15 de maio de 2008

Giordano Bruno: o martírio de um sábio





A execução do filósofo e cientista Giordano Bruno pelas chamas da Inquisição Romana no ano de 1600, foi um dos acontecimentos mais dramáticos da época do Renascimento. Para alguns representou o fim da tolerância da Igreja Católica para com a dissidência representada por alguns sábios, para outros foi o sinal do recomeço dos tempos obscurantistas que opuseram a fé contra a ciência num confronto que não teve mais fim.

"Ainda que isso seja verdade, não quero crê-lo; porque não é possível que esse infinito possa ser compreendido pela minha cabeça, nem digerido pelo meu estômago..."Búrquio, num diálogo de G.Bruno, in"... do infinito, do universo e dos mundos", 1584.

A execução de Giordano Bruno

Era o dia 17 de fevereiro de 1600 quando o lúgubre cortejo saindo da prisão da Inquisição, ao lado da Igreja de São Pedro, seguiu pelas ruas de Roma até chegar no Campo dei Fiori, uma praça onde uma enorme pilha de lenhas amontoava-se ao redor de uma estaca fincada no terreno. Era a fogueira que iria abrasar vivo o filósofo Giordano Bruno. Trouxeram-no com uma mordaça na boca por temerem que ele pudesse dirigir algumas palavras perigosas ao povo que se juntava a sua passagem. Ao oferecerem-lhe o crucifixo para o beijo derradeiro, revirou os olhos. Em minutos, ao embalo das preces dos monges de San Giovanni Decollato, o verdugo jogou uma tocha na base da pira que, num instante, devorou-lhe as carnes. Estava feito.

Talvez, naquele instante derradeiro, ele recordasse as palavras que certa vez escrevera num momento de profunda melancolia: Vejam, prognosticou Bruno, o que acontece a este cidadão servidor do mundo que tem como o seu pai o Sol e a sua mãe a Terra, vejam como o mundo que ele ama acima de tudo o condena, o persegue e o fará desaparecer. Morto aos 52 anos de idade, tornou-se um mártir do livre-pensamento, e um símbolo da intolerância da Contra-Reforma liderada pela Igreja Católica.

O processo da Inquisição

Os agentes do Santo Ofício prenderam-no oito anos antes em Veneza, cidade onde o filósofo respondeu ao primeiro processo que a Inquisição lhe moveu. Sabe-se com detalhes deste episódio porque a documentação foi publicada em 1933, por Vicenzo Spampanato (*). Giordano Bruno, que há anos vivia no exterior, teria retornado à Itália em razão de um embuste. Uma dupla de livreiros, atendendo a um desejo de um nobre veneziano chamado Giovanni Mocenigo, ao encontrar Bruno na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 1590, convidou-o para vir à cidade dos doges a pretexto de ensinar a mnemotécnica, a arte de desenvolver a memória (tida como atividade mágica, herética), na qual ele era um perito.

Uns tempos depois da sua volta à Itália, devido a um áspero desentendimento, Mocenigo trancou-o num quarto da sua mansão e chamou os agentes do tétrico tribunal inquisitorial para levarem-no preso, acusando-o de heresia. Encarceraram-no na prisão de San Castello no dia 26 de maio de 1592.

Na primeira vez em que o interrogaram, Bruno conciliou. De nada lhe serviu. Em seguida, o Santo Ofício de Roma, alegando soberania em casos de heresia, exigiu que o Doge, o governante de Veneza, mesmo a contragosto, lhe enviasse Bruno algemado. Enquanto não se deu o translado, além de terem-no torturado, colocaram-no num espantoso calabouço. Era um poço imundo, úmido e escuro como breu, cavado num porão a beira do canal. A viagem a Roma, ainda que a ferros, deve ter-lhe parecido um alivio.

O interrogatório e o ultimato de Giordano Bruno

Em 27 de fevereiro de 1593 ele chegou à prisão papal. Seguiu-se então um longo e morníssimo processo, onde os inquisidores não sabiam bem o que fazer com ele. Interrogou-o Roberto Bellarmino, o jesuíta que, anos depois, em 1616, já Cardeal, iria também acusar Galileu Galilei. Sujeitaram-no a vinte e uma entrevistas. Ocorreu que nestes anos em que passou encarcerado, Bruno mudou sua posição. O confinamento, a má comida, o frio permanente e a constante espionagem dos seus vizinhos de cela (nos processos encontram-se citados mais de cinco testemunhos deles), ao invés de enfraquecerem-lhe o ânimo, tiveram um efeito contrário. Além de aumentar o desprezo de Bruno pela Igreja, endureceu-lhe a posição: "não creio em nada e não retrato nada, não há nada a retratar e não serei eu quem irá se retratar!". Infelizmente, não foi esse o entender definitivo da Congregação do Santo Ofício, que se reuniu em 21 de dezembro de 1599, presidida pelo Papa Clemente VIII.

"Os padres teólogos", determinou o documento final, "deverão inculcar no dito frade Giordano (Bruno era frei dominicano, mas não mais vinculado à ordem), que suas proposições são heréticas e contrárias à fé católica... Se as rechaçar como tais, se quiser abjurá-las, que seja admitido para a penitência com as devidas penas. Se não, será fixado um prazo de 40 dias para o arrependimento que se concede aos hereges impenitentes e pertinazes. Que tudo isso se faça da melhor maneira possível e na forma devida".

A leitura da sentença

Exigiram a rendição final de Bruno: se abjurasse deixavam-no vivo. Ou então o excomungavam e, em seguida, o entregavam ao braço secular para que aplicasse a sentença de morte, "sem que o sangue fosse derramado", isto é, o queimassem. O papa esperava um triunfo. A capitulação de Bruno teria um notável efeito propagandístico num ano da "graça" como o de 1600, troca de século. Ele rejeitou. Conduziram-no, então, à praça Navone para escutar a sentença no dia 8 de fevereiro. Ajoelhado em frente a nove inquisidores e ao governador da cidade, disse-lhes: "vocês certamente têm mais medo em pronunciar esta sentença do que eu em escutá-la!".

O temperamento de Giordano Bruno

Afinal de contas qual era a causa desta infeliz celeuma? Testemunhos disseram que muito do desenlace infausto, para Bruno, e para a Igreja Católica, deveu-se à maneira de ser do filósofo. Bruno, um italiano de Nola, perto de Nápoles, onde nascera numa família da pequena nobreza local em 1548, era um temperamental, um tipo vulcânico, dado a formidáveis explosões coléricas. Para um homem que se considerava em missão, ele era um desastre. Se medisse as palavras, se fosse mais sutil em defender suas idéias, mais sedutor, talvez escapasse daquele fim terrível. Provavelmente, como em tantos outros casos, o manteriam na prisão, e só o queimariam em efígie. Mas o monge era um polemista nato, vibrante, desaforado, um iconoclasta. Arrogante, disse aos inquisidores que já começara a duvidar dos dogmas da Igreja ao entrar no mosteiro aos 17 anos, e que sabia bem mais teologia do que todos os que o interrogavam.

As consequências da morte de Bruno

O suplício de Giordano Bruno em 1600, seguido do julgamento de Galileu em 1616 (mais tarde renovado por um segundo julgamento e pela abjuração de 1633, onde condenaram-no à prisão domiciliar até a sua morte em 1642), provocou, desde então, uma irreparável desconfiança da ciência para com a religião. Para a Itália esta posição da Igreja Católica foi desastrosa. Os sábios da península, que até então lideravam o movimento científico europeu, ao sentirem-se intimidados pela fogueira da Inquisição, perderam a primazia do conhecimento. Esta se transferiu para os que viviam nos países da Igreja Reformada. Descartes, por exemplo, o grande filósofo e cientista francês, quando soube da abjuração forçada de Galileu, mudou-se em definitivo de Paris, capital de um país papista, para a Holanda reformada. A obra de Bruno, por sua vez, só foi retirada do Index dos livros proibidos aos católicos em 1948.

Um medo sombrio pairou sobre as ações da Igreja Católica. Viram-na como uma instituição capaz de perseguir os doutos e os sábios, caso eles questionassem o Alto Clero e a burocracia papal. Imagem negativa que perdurou até recentemente, quando o Papa João Paulo II desculpou-se pela infelicidade do processo contra Galileu, reabilitando-o em 1992. Porém, até o momento, o Pontificam Consilium Cultura que reabilitou Johann Huss e Galileu, ainda não tomou uma decisão favorável a Giordano Bruno. A Igreja Católica só deplorou a execução, mas não os motivos da sua condenação.

Nenhum comentário: