domingo, 28 de setembro de 2008

Há Democracia?

HÁ DEMOCRACIA NO PARÁ? ADVOGADO PÕE EM DÚVIDA


Lúcio Flávio Pinto

Jornal Pessoal

Outubro de 2008/ 1ª Quinzena

 

A Ordem dos Advogados do Brasil foi uma das instituições mais importantes na transição para o retorno do Brasil ao regime democrático. Seu Presidente nessa fase, Raymundo Faoro, foi um dos interlocutores de atuação mais destacada na defesa das garantias dos direitos humanos, dentre os quais o da liberdade de expressão. No curso do mais longo período democrático da história republicana brasileira, o atual, a OAB tem claudicado na sustentação de bandeiras que foram tão caras e sacrificantes de empunhar quando o regime militar chegava ao fim.

 

No Pará, por exemplo, a OAB não se vexou de considerar a agressão que sofri, em conseqüência do pleno exercício do direito de imprensa, como um caso de flagrante violação dessa garantia constitucional, um dos principais elementos constitutivos do estado democrático de direito, ao qual osadvogados estão sempre a se referir, freqüentemente apenas da boca para fora. A violência praticada contra mim (que já fui até integrante da Comissão de Meio Ambiente da Ordem, anos atrás, e várias vezes convidado para participar, no passado, de encontros promovidos pela entidade) foi considerada “rixa familiar”. O meu agressor, Ronaldo Maiorana, foi mantido como Presidente da Comissão em Defesa à Liberdade de Imprensa, de nomenclatura tão torta quanto a sua composição.

 

Meus leitores e eu temos bradado aqui contra os abusos cometidos pela imprensa, com destaque para O Liberal, no seu noticiário policial. As matérias desrespeitam a dignidade da pessoa humana e violam vários direitos, inclusive à própria imagem, em relação aos quais os donos de jornais manifestam tanta susceptibilidade (quando se tomam por vítimas) e em defesa dos quais não param de provocar o Judiciário, cobrando-lhe pronta e completa tutela, mesmo quando a litigância é caprichosa ou de má-fé. Como é que a valorosa OAB do passado, da época da tão nefanda ditadura, vai puxar as orelhas de jornalistas e empresários inescrupulosos e anti-éticos se a Comissão específica é presidida pelo dono de uma dessas empresas recalcitrantes? Como vai sair novamente em defesa da cidadania, se mantém essa vinculação, que mesmo do estrito ponto de vista técnico-profissional é incompatível com a natureza da função?

 

Há outro comprometimento, este mais de natureza corporativa. A OAB não abre mão de submeter os bacharéis em direito ao exame de ordem, como condição para autoriza-los a exercer a advocacia. É uma posição respeitável e passível de ser defendida com êxito. Mas há pessoas que divergem desse entendimento. O mais conhecido advogado no Pará contrário à exigência do exame de ordem é Fernando Lima. Em ofício encaminhado no final de julho de 2007 à OAB/PA, ele denunciou que está sendo censurado e impedido de continuar a manifestar a sua divergência.

 

Nessa comunicação, Fernando Lima disse que há algum tempo seus artigos “não estão sendo publicados por nenhum dos jornais de Belém”. Mas a imprensa local “costuma divulgar, quase com exclusividade, o ‘discurso’ dos dirigentes da OAB, em defesa do Exame de Ordem, sem permitir a divulgação das opiniões jurídicas divergentes”.

 

Assegura o advogado que “nos dois principais jornais de Belém, pertencentes a diferentes grupos políticos, eu não tenho conseguido publicar mais nada. Até mesmo ‘cartas do leitor’, enviadas em duas oportunidades, a um desses jornais, não foram publicadas. Evidentemente, eles não dizem o motivo, mas eu acredito que seja devido às críticas que faço, em vários assuntos polêmicos, tais como o IPTU, os temporários do Estado, e tantos outros, como o próprio Exame de Ordem da OAB”. Fernando Lima lembra que esse problema “é recente, e é preciso ressaltar que os meus artigos já são publicados, nos jornais locais, há mais de trinta anos”.

 

Impedido de se expressar por escrito na grande imprensa, ele tem procurado manifestar seus pontos de vista em encontros e debates acadêmicos e profissionais. Numa das últimas ocasiões, ele denunciou o fato ao Secretário-Geral da OAB/PA. Queria que a Ordem “tomasse as providências cabíveis, junto a esses jornais, para que os meus artigos pudessem voltar a ser publicados”. Obteve o apoio do colega, mas não teve qualquer resposta da instituição. A tarefa caberia à mesma comissão encarregada de fiscalizar a liberdade de imprensa, mas seu Presidente aceitaria cortar na própria carne, ou teria isenção para cortar na carne da empresa concorrente?

 

Um gesto concreto de apoio ele diz que teve da OAB da Paraíba, em cujo site um artigo seu foi publicado, “embora extenso”. Considerou a iniciativa “um bom exemplo de atitude democrática, dos dirigentes da OAB, que poderia ser aproveitado, aqui no Pará”. E completou: “Aqui em Belém, o resumo desse artigo foi publicado por um dos jornais locais, em julho de 2005. E foi o último, porque depois disso eu não consegui publicar mais nada, nesse jornal”.

 

Fernando Lima admite que sua opinião jurídica sobre o exame da OAB pode ser discutida. “Mas, em um regime que se pretende seja democrático, ninguém tem o direito de impedir a divulgação das opiniões contrárias. Ninguém pode estabelecer a censura da imprensa, nem cercear, de qualquer maneira, a liberdade de manifestação do pensamento. A imprensa, em um regime democrático, precisa ser livre e imparcial”.

 

Mas ela não está livre no Pará. Aliás, no Pará há democracia? Há imprensa livre e democracia de fato no próprio Brasil, embora formalmente os cidadãos disponham de todos os institutos democráticos em tese para fazer valer os seus direitos e garantias? Fernando Lima cita o jornalista Marcel Leal, para o qual a liberdade de imprensa no Brasil é uma miragem:

 

“Leis? Ora, as leis. Nos últimos 20 anos, dezenas de jornalistas foram ameaçados, surrados e assassinados no Brasil. Nenhum – preste atenção nisso – nenhum assassino ou mandante foi preso, ou sequer indiciado. Nenhum. Em compensação, vários jornalistas foram processados, condenados, e alguns presos, por acreditarem nos artigos da Constituição Brasileira que garantem a liberdade de opinião, expressão e imprensa. Por acreditarem que as leis são para todos. Por acreditarem que a função da polícia é prender bandidos, ricos ou pobres. Por acreditarem que o Judiciário é “justo” e “independente”.

 

Acrescenta Marcel Leal: “Para quem acha exagero, lembro que nenhum país pode ter democracia e respeito aos direitos de seus cidadãos sem uma imprensa livre. Pior do que não ter democracia é achar que a temos, quando na verdade informações importantes são sonegadas a você por medo. Medo de morrer. Porque até agora, quem mata jornalistas nunca é punido”.

 

Fernando Lima dá razão ao jornalista: “quando o povo lê e acredita no que diz o comentarista da TV, ou no que os jornais publicam, pode estar sendo vítima de um torpe processo de propaganda, através do qual a mídia somente publica aquilo que lhe interessa, ou então os comentários dão aos fatos a interpretação mais adequada aos objetivos dos donos das empresas jornalísticas, e dos políticos com os quais eles estão associados”.

 

Ele acrescenta à sonegação das informações por medo, conforme disse o jornalista, aquelas que também podem ser sonegadas “para atender aos interesses políticos, econômicos, individuais, corporativos, etc., de pessoas ou de grupos que detenham parcelas consideráveis de poder e que pretendam privilegiar esses interesses, em detrimento do interesse público, utilizando, para isso, os serviços prostituídos da imprensa, que deveria ser imparcial”.

 

As empresas jornalísticas, sustenta Fernando, “não podem ser balcões de negócios, porque elas desempenham, ou deveriam desempenhar, uma importantíssima função institucional, de defesa das instituições democráticas e republicanas, de defesa do interesse público, de defesa do governo constitucional e de defesa, enfim, das nossas liberdades”.

 

“Uma imprensa censurada, ou uma imprensa prostituída, é capaz de anular, na prática, todas as nossas liberdades, até hoje conquistadas. É fundamental, para a manutenção dessas liberdades, que se garanta ao povo, a todos, o acesso à informação imparcial, à crítica e ao debate”, proclama Fernando, que possui 37 anos de militância jornalística e nesse período produziu mais de 300 artigos jurídicos, sendo filiado à ABI (Associação Brasileira de Imprensa).

 

O advogado reconhece que não existe regime democrático sem uma imprensa livre. Mas ressalva: “Não basta, porém, que a nossa Constituição diga que temos um regime democrático e diga, também, que temos liberdade de manifestação de pensamento, através de uma imprensa livre. É preciso constatar, na prática, se isso é verdade e é preciso lutar, sempre, em defesa das nossas liberdades”.

 

No entendimento do advogado, a OAB “tem uma enorme responsabilidade, nesse particular”. E uma das provas dessa responsabilidade é não permitir “que seja impedida a publicação das críticas ao seu Exame de Ordem”.

 

Com a palavra, a instituição. Para responder de fato. Com data vênia e tudo.  


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