quarta-feira, 21 de maio de 2008

Retrato tributário brasileiro

Carlos de Souza Gomes
O Brasil é o país do confisco. Isso porque, desde a época de sua colonização, os rígidos impostos cobrados pela Coroa Portuguesa já tragavam boa parte da riqueza do solo brasileiro. Os achaques da Coroa iniciaram com a alta tributação sobre a produção do açúcar e do fumo, principais culturas desenvolvidas no Brasil colonial, seguidos pela cobrança do quinto, isto é, exação fiscal do Império Português que lhe reservava o direito a quinta parte de toda a extração do ouro obtido pelas jazidas brasileiras (1750 e 1770).

A reserva do quinto também foi estendida à extração de diamantes. Contudo, devido ao intenso contrabando e sonegação, levou ao cúmulo de a metrópole, no ano de 1771, decretar a chamada Extração Real, que consistiu na criação do monopólio imperial sobre o diamante, que vigorou até 1832.

Isso tudo vigiado de perto pela Coroa Inglesa, que mostrava interesse nas descobertas portuguesas no novo mundo. De ressaltar o Tratado de Methuem (1703), pelo qual Portugal é obrigado a adquirir os tecidos da Inglaterra e essa, os vinhos portugueses. Para Portugal, esse acordo liquidou com suas manufaturas e agravou o acentuado déficit na balança comercial, onde o valor das importações (tecidos ingleses) iria superar o das exportações (vinhos).
Não demorou muito para que a Inglaterra consolidar-se em uma potência industrial hegemônica, tornando-se o maior centro ficnanceiro do velho mundo, graças a sua influência econômica sobre Portugal e, consequentemente, sobre a riqueza mineral do Brasil colônia.

Desde os tempos de Colônia, entretanto, que a desigualdade impera em nosso sistema tributário que, por vias transversas, sempre utilizou o confisco como forma de receita. Porém, no Brasil colonial, a riqueza brasileira fomentava obviamente os interesses das coroas portuguesa e inglesa. Agora, passados 184 anos de independência política, as riquezas brasileiras continuam servindo aos interesses particulares e sacrificando a nossa sacrificada sociedade.
E isso não é mera quimera, porquanto a sanha fiscal do governo federal superou o quinto então exigido pela Coroa Portuguesa. Isso porque, no último século, o Brasil massacrou seus contribuintes ao triplicar a arrecadação de tributos que passou de 10% do PIB em 1900 para 36% do seu total em 1999. O pior de tudo está em não conhecermos o estanque desse aumento, porquanto as despesas primárias do governo federal não possuem limites, revigoram-se a cada mandato eleitoral. Sem falar que o Brasil de hoje já é recordista em arrecadação, sendo responsável pelo incremento do PIB nacional na ordem de 36,45% do seu total. Logo, se estivéssemos sobre o império da Coroa Portuguesa o quinto teria se tornado em terço.
Não se perca de vista que, neste último século, houve quatro reformas tributárias (1934, 1946, 1967 e 1988). Nesse ponto, destaca-se a análise realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE a respeito das reformas tributárias antes assinaladas, verbis:
De 1920 a 1958, a carga tributária passa de 7% para 19% do PIB, com crescimento das tributações domésticas e dos tributos diretos e a criação de impostos sobre o consumo e a renda (IR, criado em 1924 e o Imposto sobre Vendas e Consignações - atual ICMS, criado em 1934), que passam a se constituir nas principais fontes de receita. Na reforma de 1934 é concedida competência tributária aos municípios, com a criação dos impostos Predial e de profissões. O imposto de importação se torna, a partir daí, um instrumento de política comercial.
Na reforma de 1967 é introduzido o Imposto sobre o Valor Adicionado e são introduzidos mecanismo para aumentar a eficácia da arrecadação.

Na reforma de 1988, com o aumento da participação dos estados e municípios na arrecadação dos impostos de renda e sobre produtos industrializados, o governo federal intensificou a arrecadação de contribuições sociais indiretas, não compartilhadas com estados e municípios, como COFINS, CSLL e CPMF.

Perceptível, de plano, que a partir de 1967 o governo federal preferiu concentrar o fato tributável sobre a produção, a circulação e os salários. Afastou sua voracidade do capital e do patrimônio. Inegável que a arrecadação relativa a produção e ao salário representaram 75,74% do total amealhado entre impostos, taxas e contribuições, ou o equivalente a 27,60% do PIB nacional. Resulta daí que 49% da carga tributária do Brasil está concentrada nos fatos geradores incidentes sobre os bens e os serviços (ICMS, IPI, PIS, COFINS, CPMF, IOF, ISS e CIDE), 27% sobre os salários (IR s/ salário, INSS, FGTS, Contribuição Servidor Público), e apenas 16% sobre o capital e outras rendas (IR, CSLL e IOF), sendo insignificante a tributação sobre o patrimônio 3% (IPVA, IPTU, ITBI, ITCD, e ITR) e 5% relativos ao comércio exterior e aos demais fatos tributários. Resta evidente, por conseguinte, que o setor produtivo e os assalariados são quem estão pagando a conta com as despesas do governo federal, na ordem de 49% (bens e serviços) e 27% (salários).

Além disso, o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário - IBPT fez um estudo recente sobre a problemática do nosso sistema tributário e concluiu que para o contribuinte compreender razoavelmente a realidade tributária brasileira seria necessário analisar três mil normas fiscais, estudar os 61 tributos cobrados no Brasil, além de verificar 93 obrigações assessórias que sufocam todas as empresas brasileiras. Compreenderiam, por conseguinte, porque o crime por evasão fiscal não significa despeito com a fiscalização, mas, muitas vezes, simples compreensível desinformação. Sem falar na tributação em cascata, ou seja, a incidência reiterada de um mesmo tributo nas várias etapas da produção ou circulação, ou seja, a CPMF incide sobre o montante do ICMS, do IPI, do PIS e COFINS, do INSS, do Imposto de Renda, da Contribuição Social, e assim por diante. Exemplo similar ocorre com a exação do PIS e da COFINS que incidem sobre o valor do ICMS, do INSS, do IRPJ e da Contribuição Social. E não seria razoável, entrementes, imputar aos contribuintes severas punições e criticas se deixassem de recolher algum tributo no prazo determinado quando somos sabedores do caos que se tornou o nosso sistema tributário nacional.
Diante desse flagelo fiscal, necessário realizar uma reforma no sistema tributário nacional a fim de melhorar a distribuição da carga fiscal, desonerar o setor produtivo de nossa economia e acentuar a arrecadação sobre o patrimônio e o capital. Sem se descuidar de intensificar seus esforços na simplificação do sistema tributário nacional, modernização do sistema arrecadatório, melhor repartição da receita tributária, redução das alíquotas dos tributos e, principalmente, na diminuição da burocracia.

Carga tributária bruta brasileira aumenta cerca de 35%

A Carga Tributária Bruta Brasileira (CTBB) aumentou consideravelmente nos últimos doze anos, saltando de 26% do Produto Interno Bruto (PIB) em 1995 para cerca de 35% em 2007. A CTBB é definida pela soma de todas as receitas (impostos) recebidas pelos governos – federal, estadual e municipal – dividida pelo PIB. Em 2006, a CTBB atingiu 34,6% e ultrapassou a marca dos 35% do PIB em 2007.
Os dados fazem parte do estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA): “A Evolução da Carga Tributária Bruta Brasileira no Período 1995-2007: Tamanho, Composição e Especificações Econométricas Agregadas”, dos pesquisadores Cláudio Hamilton e Marcio Bruno. Segundo a análise, a elevação da CTBB nesta magnitude só encontrou similaridade histórica no período posterior ao golpe militar de 1964. Desta forma, não é surpreendente que o tema esteja no centro do debate sobre a economia em geral, como, por exemplo, os níveis de preços, emprego e desemprego.
De acordo com o estudo, a CTBB apresentou sua maior elevação (3,2% do PIB) no período de 1999 a 2002. Essa temporada caracterizou-se pela adoção de metas formais de superávit primário para o setor público, sobretudo, com a assinatura do acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) no final de 1998. No período, as maiores responsáveis pelo aumento da CTBB foram às arrecadações oriundas dos impostos sobre renda e patrimônio (elevação de 1,9% do PIB) e dos impostos sobre produtos (aumento de 1% do PIB).
Entre 1998 e 2003, a carga tributária bruta brasileira se caracterizou por uma tributação mais pesada nas empresas estatais e pela criação de novos impostos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 1995 e 2005, o total de impostos, taxas e contribuições pagos pelo setor privado ao governo saltou de aproximadamente 26% para 33,8% do PIB. Já de 2004 a 2007, a elevação se deu por um aumento da lucratividade das empresas e da formalização do mercado de trabalho, com um novo ciclo de crescimento econômico.
Já entre 2003 e 2006, quando a carga tributária subiu 2,4% do PIB, a característica do período centra-se na contínua política de superávits primários, além de um cenário de certo dinamismo macroeconômico. O principal responsável pelo aumento da carga tributária bruta foi o componente Contribuições Previdenciárias (CPs), com elevação de 1% do PIB. No período de 1995 a 2007, as CPs aumentaram cerca de 2,5% do PIB. As contribuições previdenciárias respondem por cerca de um quarto da CTBB.
Os tributos brasileiros, que formam a CTBB, são divididos em cinco categorias: os impostos sobre produtos; outros impostos ligados à produção; impostos sobre renda e patrimônio; contribuições sociais efetivas e os impostos sobre o capital. Os impostos sobre produtos, por exemplo, respondem por pouco mais de 40% da CTBB.
Nos últimos doze anos, a arrecadação anual com impostos sobre produtos cresceu cerca de 1,5% do PIB. Os sete principais tributos no quadro do IBGE “impostos sobre produtos” respondem por cerca de 98% da arrecadação total com esses impostos: o ICMS (cerca de 50% da arrecadação em 2005), o COFINS (28%), o IPI (8%), o ISS (4,5%), o imposto sobre importações (3%), a CIDE-Combustíveis (2,5%) e o IOF (2%).
No período entre 1995 e 2007, a trajetória da CTBB caracteriza-se por dois tipos de comportamento: sazonalidade e tendência crescente. A sazonalidade refere-se à concentração da elevação da CTBB no primeiro trimestre de cada ano. Esse comportamento pode ser determinado pelo componente “impostos sobre renda, patrimônio e capital”, cujos valores nominais mostraram elevações nos primeiros trimestres de todos os anos. Quanto à trajetória crescente da carga tributária, a tendência reflete uma elevação da CTBB em torno de 8% do PIB para o período de 1995 a 2006. Os componentes “impostos sobre produtos”, “impostos sobre renda, patrimônio e capital” e “contribuições previdenciárias”, parecem explicar essa tendência.
Clique aqui para ter acesso ao estudo
Amanda Costa
Do Contas Abertas

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Eis a explicação do presidente






"Porque não pode todo mundo ser o Ronaldinho"



Eis a explicação do presidente Lula para o tremendo sucesso de seu filho Fábio Luís, que coincide com o mandato presidencial do pai



Alexandre Oltramari

Como aconteceria com qualquer pai, o presidente Lula tem demonstrado o orgulho que sente pelo sucesso de seu filho Fábio Luís Lula da Silva. Aos 31 anos, Lulinha, apelido que ele detesta, é um empresário bem-sucedido. É sócio de uma produtora, a Gamecorp, que, com um capital de apenas 100.000 reais, conseguiu fazer um negócio extraordinário: vendeu parte de suas ações à Telemar, a maior empresa de telefonia do país, por 5,2 milhões de reais. Como a Telemar tem capital público e é uma concessionária de serviço público, a sociedade com o filho do presidente sempre causou estranheza. Na segunda-feira passada, em entrevista ao programa Roda Viva, Lula teve de falar em público sobre os negócios do filho. "Não posso impedir que ele trabalhe. Vale para o meu filho o que vale para os 190 milhões de brasileiros. Se têm alguma dúvida, acionem ele", afirmou. Dois dias depois, em entrevista à Folha de S.Paulo, o assunto Lulinha voltou ao foco. Os jornalistas lhe apresentaram uma questão formulada por um leitor do jornal, que não foi identificado. A pergunta dizia o seguinte: "Tenho 61 anos, sou pai de quatro filhos adultos, todos com curso superior, mas com dificuldades de bons empregos ou de empreender. Como é que o seu filho conseguiu virar empresário, sócio da Telemar, com capital vultoso de 5 milhões de reais?".

Em sua resposta, o presidente Lula começou explicando que seu filho virou sócio da Gamecorp quando a empresa, fundada por alguns amigos em Campinas, já tinha mais de dez anos de vida. "Eles fizeram um negócio que deu certo. Deu tão certo que até muita gente ficou com inveja", disse. Em seguida, o presidente fez menção às suspeitas que cercam a sociedade da Gamecorp com a Telemar. "Se alguém souber de alguma coisa que meu filho tenha cometido de errado, é simples: o meu filho está subordinado à mesma Constituição a que eu estou", disse o presidente, fazendo logo depois uma divagação comparativa que já nasceu imortal: "Porque deve haver um milhão de pais reclamando: por que meu filho não é o Ronaldinho? Porque não pode todo mundo ser o Ronaldinho". Os entrevistadores gostaram do paralelo estabelecido pelo presidente entre seu filho e o astro do futebol e perguntaram se não seria mais fácil virar um Ronaldinho quando se é filho do presidente. Lula respondeu: "Não é mais fácil, pelo contrário, é muito mais difícil. E eu tenho orgulho porque o fato de ser presidente da República não mudou um milímetro o hábito dos meus filhos".
Pouco ou nada se sabe dos hábitos dos filhos de Lula antes ou depois de o pai receber a faixa presidencial. Mas a trajetória profissional de Fábio Luís mudou e muito. Foi só depois da posse que seus dons fenomenais começaram a se expressar – e com tal intensidade a ponto de o pai ver nele um Ronaldinho dos negócios. Ele mostrou talento para as comunicações e, como se lerá nesta reportagem de VEJA, para a atividade de lobista junto ao governo. A reportagem revela que o filho do presidente associou-se ao lobista Alexandre Paes dos Santos, um personagem explosivo, que responde a três inquéritos da Polícia Federal, por suspeitas de corrupção, contrabando e tráfico de influência. Esse dom do filho do presidente se revelaria ainda no episódio de sua associação com a Telemar.
Sabe-se agora que os 15 milhões de reais investidos pela Telemar na empresa de Lulinha não foram um investimento qualquer. As circunstâncias sugerem que o objetivo mais óbvio seria comprar o acesso que o filho do presidente tem a altas figuras da República. O setor de telefonia estava e está em uma guerra em que, a se repetir a tendência mundial, haverá apenas um ou dois vencedores. Ganhar fatias do adversário é vital. Houve uma corrida entre grandes empresas de telecomunicações para ver quem conseguia alinhar o filho do presidente entre seu time de lobistas. A Telemar venceu. A maior empresa de telecomunicações do Brasil em faturamento e em número de telefones fixos instalados, e com 64% do território nacional coberto por ela, a Telemar é uma empresa cujo faturamento anual supera 7 bilhões de dólares. A aposta na associação com Lulinha acabou não sendo muito produtiva para a Telemar porque o escândalo veio à tona. Mas foi por pouco. O governo negociava a queda de barreiras legais que impedem a atuação nacional de empresas de telefonia fixa. Além disso, por orientação do governo, fundos de pensão de estatais preparavam-se para vender fatias relevantes de sua participação acionária no setor. Quem estivesse mais perto do poder se sairia melhor.
O Ronaldinho do presidente Lula é mesmo um fenômeno. Formado em biologia, ele ainda era chamado de Lulinha, apelido que os amigos hoje evitam, quando trabalhava como monitor no zoológico de São Paulo, com um salário de 600 reais por mês. Para reforçar seus ganhos, dava aulas de inglês e computação. Do ponto de vista profissional e financeiro, vivia uma situação que parece ser muito semelhante à dos quatro filhos com curso superior do leitor da Folha. Em dezembro de 2003, no entanto, quando Lula estava em via de completar seu primeiro ano no Palácio do Planalto, Lulinha começou sua decolagem rumo à galeria exclusiva dos indivíduos fenomenais. Junto com Kalil e Fernando Bittar, filhos de Jacó Bittar, ex-prefeito de Campinas e um velho amigo do presidente, Fábio Luís tornou-se sócio da Gamecorp, empresa de games que ainda se chamava G4 Entretenimento e Tecnologia Digital. Até aqui a trajetória de Fábio Luís lembra a dos geniozinhos americanos do Vale do Silício que se enfurnam em uma garagem e saem de lá com uma idéia matadora de vanguarda como o Google ou o YouTube, projetando-se para o estrelato dos negócios multimilionários. A Gamecorp continuou a expandir-se. Em junho deste ano, fechou um contrato com a Rede Bandeirantes para alugar seis horas de programação diária no Canal 21. Depois que o contrato foi firmado, a emissora mudou de nome: de Canal 21, passou a chamar-se PlayTV. Oficialmente, trata-se de um arrendamento de horário.
Em janeiro de 2005, apenas um ano depois da chegada de Lulinha à empresa, a Gamecorp já estava recebendo o aporte milionário de 5,2 milhões de reais da Telemar – e Lulinha já era um empreendedor de raro sucesso. A Gamecorp dera um salto estratosférico, coisa rara mesmo num mercado em expansão, como é o caso da internet e dos jogos eletrônicos. A sociedade entre a Telemar e a Gamecorp se materializou por meio de uma operação complexa, que envolveu uma terceira empresa e uma compra de debêntures seguida de conversão quase imediata em ações. O procedimento visava a ocultar a entrada da Telemar no negócio. VEJA revelou a associação em julho do ano passado.
O caso de Lulinha tem uma complexidade maior. Sua relação com a Telemar não se esgota nos interesses de ambos na Gamecorp. O filho do presidente foi acionado para defender interesses maiores da Telemar junto ao governo que o pai chefia. Em especial, em setores em que se estudava uma mudança na legislação de telecomunicações que beneficiava a Telemar. VEJA descobriu agora que a mudança na lei foi tratada por Lulinha e seu sócio Kalil Bittar com altos funcionários do governo. O assunto levou a dupla a três encontros com Daniel Goldberg, titular da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE). Em um desses encontros, ocorrido no início de 2005, Lulinha e Kalil, já então sócios da Telemar, sondaram o secretário sobre a posição que a SDE tomaria caso a Telemar comprasse a concorrente Brasil Telecom – fusão que a lei proíbe ainda hoje. Goldberg, ciente do obstáculo legal, disse que o negócio só seria possível mediante mudança na lei. O estouro do escândalo Lulinha abortou os esforços para mudar a legislação e favorecer o sócio do filho do presidente.
Quando a Telemar fez uma oferta de compra à Brasil Telecom, o mercado interpretou o movimento como um sinal de que a mudança na lei era dada como certa. Paralelamente à oferta, estavam em plena efervescência os encontros de Lulinha e Kalil com Goldberg para tratar dos bastidores da negociação entre duas gigantes da telefonia. Oficialmente nada disso ocorreu. O assessor de Lulinha e Kalil, o jornalista Cláudio Sá, diz que, se houve encontros com Goldberg, foram contatos meramente sociais. Mas do que eles falaram? "Encontros sociais. Aperta a mão. Como vai? Tudo bem? Tudo certo? Esse tipo de coisa", responde o assessor. Goldberg diz que não foi nada disso. Ele conta que conversou com Lulinha e Kalil para aconselhá-los a contratar uma "consultoria tributária e um escritório de advocacia". É bastante improvável que essa seja toda a verdade porque, nessa época, a Gamecorp já tinha consultor. Era Antoninho Marmo Trevisan, amigão do presidente.
A constatação que se esconde por trás disso é a de que Lulinha, depois de receber a bolada da Telemar, começou a comportar-se como lobista da empresa junto ao governo de seu pai. Pode-se afirmar com certeza que em pelo menos um encontro oficial Lulinha tratou de ajudá-la. Antes de entrar o dinheiro da Telemar o lobby da dupla Lulinha-Kalil era feito justamente em favor da concorrente, a Brasil Telecom. Com a ajuda de Lulinha e Kalil, Yon Moreira da Silva, da Brasil Telecom, conseguiu ser recebido pelo presidente Lula em uma audiência que, curiosamente, não constou da agenda oficial do Palácio do Planalto. Ela foi marcada por César Alvarez, assessor especial da Presidência, e durou quase duas horas – sem mais ninguém na sala. Sobre o que Yon Moreira e o presidente conversaram? Segundo Yon Moreira, sobre o projeto Computador Conectado, que visaria difundir a venda de computadores populares e o acesso gratuito à internet. "Lula ficou impressionado com o projeto que apresentei a ele", diz Yon. "Houve uma sintonia entre nós. Mas não falamos nenhuma palavra sobre o filho dele." Yon Moreira completa: "Lula queria que os pobres do Brasil tivessem acesso à internet, e eu tinha o melhor projeto para realizar esse sonho". O auxílio de Lulinha e Kalil ao então diretor da Brasil Telecom é grave à luz de uma informação adicional: o encontro ocorreu no mesmo período em que o representante da empresa pagava 60.000 reais mensais a Lulinha e Kalil a pretexto de patrocinar um programa de games da dupla exibido pela Rede Bandeirantes. Essa é a mais simples e clara demonstração de um lobby empresarial junto ao governo: a Brasil Telecom patrocinava Lulinha e Kalil e, ao mesmo tempo, a dupla abria as portas da sala do presidente da República à Brasil Telecom. Parece inocente. Não é. Como esses encontros ocorreram a portas fechadas e como os interesses das teles eram (e são) bilionários, qualquer simpatia do governo por um ou outro contendor é decisiva.

Em suas visitas a Brasília, Lulinha e Kalil ocupavam uma sala no escritório do lobista Alexandre Paes dos Santos, conhecido como APS. O escritório de APS está instalado em uma imponente mansão com quatro andares e elevador na sofisticada região do Lago Sul. Ali, com regularidade mensal, Lulinha e Kalil despacharam por quase dois anos, entre o fim de 2003 e julho do ano passado. A sala usada pela dupla tem 40 metros quadrados. Fica bem ao lado da sala do lobista APS. Há algumas semanas, estava mobiliada com duas mesas. Todas as cadeiras eram vermelhas. Havia dois computadores, duas linhas telefônicas, uma impressora e um único quadro na parede. Lulinha e Kalil tinham ramais privativos, o 8118 e o 8130. Sobre sua relação com a dupla Lulinha-Kalil, APS diz apenas: "Eu emprestei a sala, mas não tenho a menor idéia do que eles faziam lá". Seria ingênuo esperar que dissesse alguma coisa mais comprometedora sobre os vizinhos de sala e colegas por dois anos.
Além da sala, APS também colocou sua frota à disposição da dupla. Quando Lulinha e Kalil começaram a freqüentar o escritório do lobista, seus deslocamentos por Brasília eram feitos em Ford Fiesta. Com cerca de 1,90 metro de altura, Kalil reclamou que o Fiesta era desconfortável e disse que gostaria de um carro mais espaçoso. APS substituiu o Fiesta por um Omega. Enquanto despachavam na mansão de APS durante o dia, Kalil e Lulinha eram hospedados na Granja do Torto ou no Palácio da Alvorada, residências oficiais da Presidência da República. Quando isso não era possível, Kalil ia para o hotel Blue Tree, a menos de 1 quilômetro do Alvorada. Não se conhecem bem as razões pelas quais Lulinha e Kalil mantinham uma sala no escritório do lobista de métodos heterodoxos. O que faziam ali? Por que despachavam dali? Em busca dessas respostas, VEJA descobriu que a sala foi cedida a Lulinha e Kalil como parte de um acordo dele com a francesa Arlette Siaretta, dona do grupo Casablanca, um conglomerado de 54 empresas que, entre outras atividades, faz produção de filmes e eventos, gravação de comerciais e distribuição de DVDs.
Em 2002, Arlette Siaretta e APS se tornaram sócios num projeto de transmissão de imagens digital via satélite. Desde então, a mansão do lobista passou a funcionar como filial informal da empresa Casablanca em Brasília. "Ela me pediu a sala e eu cedi", diz APS. Mas por que a Casablanca teria interesse em instalar Lulinha e Kalil em sua filial informal em Brasília? Apesar de ser dona de metade do mercado de finalização de comerciais no país, Arlette Siaretta tinha um problemão no início do governo de Lula. Ligada ao PSDB e produtora das últimas três campanhas presidenciais tucanas, a empresária encontrou no PT uma muralha que lhe barrava negócios com o governo federal e as estatais, até então uma de suas grandes fontes de receita. Arlette Siaretta precisava de alguém para lhe abrir as portas do governo.
No fim de 2003, o sócio de Lulinha apareceu em seu escritório, em São Paulo, prometendo exatamente aquilo de que a empresária precisava – portas abertas. "Você tem uma grande empresa. Eu tenho acesso às pessoas que decidem. Podemos ganhar dinheiro juntos", teria dito Kalil, conforme o relato feito a VEJA por uma testemunha do encontro. Arlette Siaretta adorou a idéia. Fecharam negócio: Kalil receberia 5% das transações no governo que a Casablanca conseguisse por seu intermédio. Não poderia haver escolha melhor. Os "meninos" do presidente entregaram o que prometeram. Pois bem, Siaretta continuou tendo no governo petista a mesma participação que tinha no mercado nos oito anos dos tucanos, algo em torno de 50% de todos os contratos de filmes feitos para as empresas de publicidade que prestam serviço ao governo.
Não se sabe por que Arlette Siaretta confiou em Kalil. Procurada por VEJA em cinco oportunidades, a empresária não quis dar entrevista. Sabe-se, porém, que uma das melhores credenciais de Kalil para dizer-se influente foi sua proximidade com Lulinha – que, registre-se, não esteve presente na negociação com Siaretta. A pedido de Kalil, a empresária até concordou em trabalhar com Alberto Lima, conhecido como Beto Lima, amigão de Kalil (há quinze anos) e de Lulinha (há nove anos). Dono de um bar em Campinas que falira em agosto de 2003, Beto Lima passou a despachar diariamente na sede da Casablanca, em São Paulo. Siaretta mandou imprimir cartões de visita com seu nome e a custear suas despesas com passagens aéreas e hospedagem no triângulo São Paulo–Brasília–Rio de Janeiro. Assim como Kalil e Lulinha, Beto Lima também passou a usar o escritório de APS em Brasília, que lhe servia de apoio para suas visitas às principais agências de publicidade que trabalham para o governo e para estatais. Beto Lima dá sua versão: "Minha função é prospectar novos negócios para a Casablanca. Usei o escritório como base operacional, apenas para dar e receber telefonemas".
Em julho de 2004, a turma deu uma grande exibição de sua influência para Arlette Siaretta. O cineasta Aníbal Massaini Neto, diretor de Pelé Eterno, um documentário sobre a vida do craque, queria exibir seu trabalho ao presidente Lula, mas não conseguia romper o bloqueio. Arlette Siaretta, que produziu o filme, colocou em movimento sua engrenagem: acionou Beto Lima, que acionou Kalil, que acionou Lulinha – que marcou uma sessão de cinema no Alvorada com a presença do pai. A exibição aconteceu na noite de 13 de julho de 2004. Depois, houve um jantar, com arroz, feijão, peixe e farofa, além de uísque e charutos cubanos. Estavam todos lá: Lulinha, Kalil, Beto Lima, além de Siaretta. A certa altura, já empolgado, Lula fez um discurso no qual começou afirmando admirar duas pessoas na vida. A platéia apostou que uma seria Pelé, o astro do filme e presente à festa. Mas não. Lula disse que admirava Abraham Lincoln e – tchan, tchan, tchan, tchannn ­ Kalil Bittar. Era a gratidão por tudo de bom que Kalil já fizera por Lulinha. A empresária Arlette Siaretta ficou muito satisfeita com o resultado do jantar, pelo acesso que conseguira e pelo prestígio de seus colaboradores.
Lulinha e Kalil mantêm-se mergulhados no mutismo sobre a real dimensão dos negócios e interesses que ajudaram em Brasília. Não falam também sobre seus despachos na sala ao lado da do lobista APS, bem como sobre suas andanças por empresas privadas e gabinetes federais. O assessor da dupla, procurado por VEJA, conversou com a revista. Disse que Kalil esteve na mansão do lobista APS, mas que Lulinha jamais colocou os pés lá. APS desmente o assessor de Kalil e Lulinha. Ele confirma que o filho do presidente despachava no escritório cedido por ele. Quando VEJA quis saber sobre outros detalhes, o assessor disse que Lulinha e Kalil não prestariam nenhum esclarecimento adicional. As investidas de lobista de Lulinha em Brasília e suas conexões empresariais merecem um esclarecimento mais pormenorizado. Todo pai tem direito de ver no filho um Ronaldinho e na filha uma Gisele Bündchen. Da mesma forma é vital tentar entender o mistério por trás de certas transformações extraordinárias dos filhos de presidentes, em especial quando elas ocorrem durante o ápice de poder dos pais.

O fenômeno Lulinha



Filho do presidente Lula, Fábio Luís Lula da Silva despontou como um fenômeno nos negócios. No entanto, isso só aconteceu depois que o presidente iniciou seu mandato. Lulinha conseguiu em menos de um ano saltar de um emprego de monitor de zoológico, no qual recebia R$ 600 mensais, para uma sociedade de uma produtora, a Gamecorp. Com um capital de apenas R$ 100 mil, a empresa conseguiu vender parte de suas ações à Telemar, a maior empresa de telefonia do país, por R$ 5,2 milhões. A associação do filho do presidente com a Telemar, empresa de capital aberto e uma concessionária de serviço público, causa estranheza e indica que seu objetivo mais óbvio seria comprar o acesso que o filho do presidente tem a altas figuras da República.
De acordo com o site Centro de Mídia Independente, Fábio Luiz Lula da Silva, o Lulinha, teria comprado a Fazenda Fortaleza -- localizada no município de Valparaíso, em São Paulo - por R$ 47 milhões.

Segundo informações contidas no site, o ex-proprietário da fazenda, o médico e pecuarista Prata Cunha, é um dos "maiores produtores de gado nelore do Brasil e vendeu, de porteira fechada, a referida fazenda, pela bagatela de 47 milhões de reais". O texto questiona como o filho do presidente Lula, que não há muito tempo era funcionário de um zoológico, poderia "ter ido deitar-se pobre e acordar como um dos maiores empresários do País".

No ano passado, Lulinha foi acusado de ter recebido pelo menos R$ 10 milhões da Oi (ex-Telemar) através de compra de capital e patrocínio para a sua empresa, a Gamecorp.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Rol dos Infames: Tomás de Torquemada (1420 - 1498)

Padre católico nascido em Valladolid, Espanha, principal organizador da Inquisição espanhola. De origem judaica e sobrinho do cardeal Juan de Torquemada, ingressou na Ordem dos Pregadores e foi prior do convento de Santa Cruz de Segóvia (1452-1474). Protegido de Fernando e Isabel, os Reis Católicos, de quem era confessor e conselheiro, foi eleito pelo papa Sisto IV para compor o grupo de oito inquisidores encarregados de organizar o recém-criado Tribunal do Santo Ofício da Inquisição (1482) e, no ano seguinte, ascendeu ao cargo de inquisidor-geral dos reinos de Castela e Aragão. Instalado em Ávila onde ficou até sua morte, promulgou (1484) os 28 artigos que orientavam os inquisidores no julgamento de crimes de heresia, apostasia, feitiçaria, bigamia, usura e blasfêmia, e autorizou a tortura para obter evidências, caso o acusado se recusasse a confessar. Célebre pelo fanatismo religioso e crueldade, seu nome tornou-se símbolo da temível instituição e chegou a ofuscar o poder real. Embora de origem judaica agiu com crueldade e fanatismo contra judeus, mouros e cidadãos suspeitos de heresia, blasfêmia, bigamia e outras práticas consideradas criminosas pelo Santo Ofício, em nome da ortodoxia católica. Seu fanatismo superou a sábia política de tolerância religiosa dos Reis Católicos, que suspenderam uma sábia política de tolerância religiosa e implantaram medidas repressivas não só contra os mouros, mas também contra judeus e marranos, assim denominados os judeus convertidos ao catolicismo, embora ele próprio fosse um deles, pois seu "poder econômico e financeiro" constituiria uma ameaça ao trono. Cerca de 170.000 judeus foram expulsos da Espanha pelo edito real de 31 de março (1492), que estipulava o exíguo prazo de quatro meses para se retirarem do país sem levar dinheiro, ouro ou prata. Estima-se em cerca de dois mil condenados foram mortos na fogueira durante sua gestão a frente da Inquisição. Temendo pelos seus excessos o papa Alexandre VI viu-se obrigado a nomear quatro inquisidores auxiliares para refreá-lo (1494).

Giordano Bruno: o martírio de um sábio





A execução do filósofo e cientista Giordano Bruno pelas chamas da Inquisição Romana no ano de 1600, foi um dos acontecimentos mais dramáticos da época do Renascimento. Para alguns representou o fim da tolerância da Igreja Católica para com a dissidência representada por alguns sábios, para outros foi o sinal do recomeço dos tempos obscurantistas que opuseram a fé contra a ciência num confronto que não teve mais fim.

"Ainda que isso seja verdade, não quero crê-lo; porque não é possível que esse infinito possa ser compreendido pela minha cabeça, nem digerido pelo meu estômago..."Búrquio, num diálogo de G.Bruno, in"... do infinito, do universo e dos mundos", 1584.

A execução de Giordano Bruno

Era o dia 17 de fevereiro de 1600 quando o lúgubre cortejo saindo da prisão da Inquisição, ao lado da Igreja de São Pedro, seguiu pelas ruas de Roma até chegar no Campo dei Fiori, uma praça onde uma enorme pilha de lenhas amontoava-se ao redor de uma estaca fincada no terreno. Era a fogueira que iria abrasar vivo o filósofo Giordano Bruno. Trouxeram-no com uma mordaça na boca por temerem que ele pudesse dirigir algumas palavras perigosas ao povo que se juntava a sua passagem. Ao oferecerem-lhe o crucifixo para o beijo derradeiro, revirou os olhos. Em minutos, ao embalo das preces dos monges de San Giovanni Decollato, o verdugo jogou uma tocha na base da pira que, num instante, devorou-lhe as carnes. Estava feito.

Talvez, naquele instante derradeiro, ele recordasse as palavras que certa vez escrevera num momento de profunda melancolia: Vejam, prognosticou Bruno, o que acontece a este cidadão servidor do mundo que tem como o seu pai o Sol e a sua mãe a Terra, vejam como o mundo que ele ama acima de tudo o condena, o persegue e o fará desaparecer. Morto aos 52 anos de idade, tornou-se um mártir do livre-pensamento, e um símbolo da intolerância da Contra-Reforma liderada pela Igreja Católica.

O processo da Inquisição

Os agentes do Santo Ofício prenderam-no oito anos antes em Veneza, cidade onde o filósofo respondeu ao primeiro processo que a Inquisição lhe moveu. Sabe-se com detalhes deste episódio porque a documentação foi publicada em 1933, por Vicenzo Spampanato (*). Giordano Bruno, que há anos vivia no exterior, teria retornado à Itália em razão de um embuste. Uma dupla de livreiros, atendendo a um desejo de um nobre veneziano chamado Giovanni Mocenigo, ao encontrar Bruno na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, em 1590, convidou-o para vir à cidade dos doges a pretexto de ensinar a mnemotécnica, a arte de desenvolver a memória (tida como atividade mágica, herética), na qual ele era um perito.

Uns tempos depois da sua volta à Itália, devido a um áspero desentendimento, Mocenigo trancou-o num quarto da sua mansão e chamou os agentes do tétrico tribunal inquisitorial para levarem-no preso, acusando-o de heresia. Encarceraram-no na prisão de San Castello no dia 26 de maio de 1592.

Na primeira vez em que o interrogaram, Bruno conciliou. De nada lhe serviu. Em seguida, o Santo Ofício de Roma, alegando soberania em casos de heresia, exigiu que o Doge, o governante de Veneza, mesmo a contragosto, lhe enviasse Bruno algemado. Enquanto não se deu o translado, além de terem-no torturado, colocaram-no num espantoso calabouço. Era um poço imundo, úmido e escuro como breu, cavado num porão a beira do canal. A viagem a Roma, ainda que a ferros, deve ter-lhe parecido um alivio.

O interrogatório e o ultimato de Giordano Bruno

Em 27 de fevereiro de 1593 ele chegou à prisão papal. Seguiu-se então um longo e morníssimo processo, onde os inquisidores não sabiam bem o que fazer com ele. Interrogou-o Roberto Bellarmino, o jesuíta que, anos depois, em 1616, já Cardeal, iria também acusar Galileu Galilei. Sujeitaram-no a vinte e uma entrevistas. Ocorreu que nestes anos em que passou encarcerado, Bruno mudou sua posição. O confinamento, a má comida, o frio permanente e a constante espionagem dos seus vizinhos de cela (nos processos encontram-se citados mais de cinco testemunhos deles), ao invés de enfraquecerem-lhe o ânimo, tiveram um efeito contrário. Além de aumentar o desprezo de Bruno pela Igreja, endureceu-lhe a posição: "não creio em nada e não retrato nada, não há nada a retratar e não serei eu quem irá se retratar!". Infelizmente, não foi esse o entender definitivo da Congregação do Santo Ofício, que se reuniu em 21 de dezembro de 1599, presidida pelo Papa Clemente VIII.

"Os padres teólogos", determinou o documento final, "deverão inculcar no dito frade Giordano (Bruno era frei dominicano, mas não mais vinculado à ordem), que suas proposições são heréticas e contrárias à fé católica... Se as rechaçar como tais, se quiser abjurá-las, que seja admitido para a penitência com as devidas penas. Se não, será fixado um prazo de 40 dias para o arrependimento que se concede aos hereges impenitentes e pertinazes. Que tudo isso se faça da melhor maneira possível e na forma devida".

A leitura da sentença

Exigiram a rendição final de Bruno: se abjurasse deixavam-no vivo. Ou então o excomungavam e, em seguida, o entregavam ao braço secular para que aplicasse a sentença de morte, "sem que o sangue fosse derramado", isto é, o queimassem. O papa esperava um triunfo. A capitulação de Bruno teria um notável efeito propagandístico num ano da "graça" como o de 1600, troca de século. Ele rejeitou. Conduziram-no, então, à praça Navone para escutar a sentença no dia 8 de fevereiro. Ajoelhado em frente a nove inquisidores e ao governador da cidade, disse-lhes: "vocês certamente têm mais medo em pronunciar esta sentença do que eu em escutá-la!".

O temperamento de Giordano Bruno

Afinal de contas qual era a causa desta infeliz celeuma? Testemunhos disseram que muito do desenlace infausto, para Bruno, e para a Igreja Católica, deveu-se à maneira de ser do filósofo. Bruno, um italiano de Nola, perto de Nápoles, onde nascera numa família da pequena nobreza local em 1548, era um temperamental, um tipo vulcânico, dado a formidáveis explosões coléricas. Para um homem que se considerava em missão, ele era um desastre. Se medisse as palavras, se fosse mais sutil em defender suas idéias, mais sedutor, talvez escapasse daquele fim terrível. Provavelmente, como em tantos outros casos, o manteriam na prisão, e só o queimariam em efígie. Mas o monge era um polemista nato, vibrante, desaforado, um iconoclasta. Arrogante, disse aos inquisidores que já começara a duvidar dos dogmas da Igreja ao entrar no mosteiro aos 17 anos, e que sabia bem mais teologia do que todos os que o interrogavam.

As consequências da morte de Bruno

O suplício de Giordano Bruno em 1600, seguido do julgamento de Galileu em 1616 (mais tarde renovado por um segundo julgamento e pela abjuração de 1633, onde condenaram-no à prisão domiciliar até a sua morte em 1642), provocou, desde então, uma irreparável desconfiança da ciência para com a religião. Para a Itália esta posição da Igreja Católica foi desastrosa. Os sábios da península, que até então lideravam o movimento científico europeu, ao sentirem-se intimidados pela fogueira da Inquisição, perderam a primazia do conhecimento. Esta se transferiu para os que viviam nos países da Igreja Reformada. Descartes, por exemplo, o grande filósofo e cientista francês, quando soube da abjuração forçada de Galileu, mudou-se em definitivo de Paris, capital de um país papista, para a Holanda reformada. A obra de Bruno, por sua vez, só foi retirada do Index dos livros proibidos aos católicos em 1948.

Um medo sombrio pairou sobre as ações da Igreja Católica. Viram-na como uma instituição capaz de perseguir os doutos e os sábios, caso eles questionassem o Alto Clero e a burocracia papal. Imagem negativa que perdurou até recentemente, quando o Papa João Paulo II desculpou-se pela infelicidade do processo contra Galileu, reabilitando-o em 1992. Porém, até o momento, o Pontificam Consilium Cultura que reabilitou Johann Huss e Galileu, ainda não tomou uma decisão favorável a Giordano Bruno. A Igreja Católica só deplorou a execução, mas não os motivos da sua condenação.

domingo, 4 de maio de 2008

Esclarecendo a Bíblia


Fonte: Sociedade da Terra Redonda

Laura Schlessinger é uma personalidade do rádio americano que distribui conselhos para pessoas que ligam para seu show.

Recentemente ela disse que a homossexualidade é uma abominação de acordo com Levíticos 18:22 e não pode ser perdoada em qualquer circunstância. O texto abaixo é uma carta aberta para Dra. Laura, escrita por um cidadão americano e também disponibilizada na Internet.

“Cara Dra. Laura

Obrigado por ter feito tanto para educar as pessoas no que diz respeito à Lei de Deus. Eu tenho aprendido muito com seu show, e tento compartilhar o conhecimento com tantas pessoas quantas posso. Quando alguém tenta defender o homossexualismo, por exemplo, eu simplesmente o lembro que Levíticos 18:22 claramente afirma que isso é uma abominação. Fim do debate.

Mas eu preciso de sua ajuda, entretanto, no que diz respeito a algumas leis específicas e como seguí-las:

a. Quando eu queimo um touro no altar como sacrifício, eu sei que isso cria um odor agradável para o Senhor (Levíticos 1:9). O problema são os meus vizinhos. Eles reclamam que o odor não é agradável para eles. Devo matá-los por heresia?

b. Eu gostaria de vender minha filha como escrava, como é permitido em Êxodo 21:7. Na época atual, qual você acha que seria um preço justo por ela?

c. Eu sei que não é permitido ter contato com uma mulher enquanto ela está em seu período de impureza menstrual (Levíticos 15:19-24). O problema é: como eu digo isso a ela? Eu tenho tentado, mas a maioria das mulheres toma isso como ofensa.

d. Levíticos 25:44 afirma que eu posso possuir escravos, tanto homens quanto mulheres, se eles forem comprados de nações vizinhas. Um amigo meu diz que isso se aplica a mexicanos, mas não a canadenses. Você pode esclarecer isso? Por que eu não posso possuir canadenses?

e. Eu tenho um vizinho que insiste em trabalhar aos sábados. Êxodo 35:2 claramente afirma que ele deve ser morto. Eu sou moralmente obrigado a matá-lo mesmo?

f. Um amigo meu acha que mesmo que comer moluscos seja uma abominação (Levíticos 11:10), é uma abominação menor que a homossexualidade. Eu não concordo. Você pode esclarecer esse ponto?

g. Levíticos 21:20 afirma que eu não posso me aproximar do altar de Deus se eu tiver algum defeito na visão. Eu admito que uso óculos para ler. A minha visão tem mesmo que ser 100%, ou pode-se dar um jeitinho?

h. A maioria dos meus amigos homens apara a barba, inclusive o cabelo das têmporas, mesmo que isso seja expressamente proibido em Levíticos 19:27. Como eles devem morrer?

i. Eu sei que tocar a pele de um porco morto me faz impuro (Levíticos 11:6-8), mas eu posso jogar futebol americano se usar luvas? (as bolas de futebol americano são feitas com pele de porco).

j. Meu tio tem uma fazenda. Ele viola Levíticos 19:19 plantando dois tipos diferentes de vegetais no mesmo campo. Sua esposa também viola Levíticos 19:19 porque usa roupas feitas de dois tipos diferentes de tecido (algodão e poliéster). Ele também tende a xingar e blasfemar muito. É realmente necessário que eu chame toda a cidade para apedrejá-los (Levíticos 24:10-16)? Nós não poderíamos simplesmente queimá-los em uma cerimônia privada, como deve ser feito com as pessoas que mantêm relações sexuais com seus sogros (Levíticos 20:14)?

Eu sei que você estudou essas coisas a fundo, então estou confiante que possa ajudar. Obrigado novamente por nos lembrar que a palavra de Deus é eterna e imutável. Seu discípulo e fã ardoroso.”

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Sobre a Bíblia Sagrada


Robert G. Ingersoll
Escrito em 1894

Alguém precisava dizer a verdade sobre a Bíblia. Os padres não ousariam, pois seriam expulsos de seus púlpitos. Os professores nas faculdades não ousariam, pois perderiam seus salários. Os políticos não ousariam, pois seriam derrotados. Os editores não ousariam, pois perderiam seus leitores. Os comerciantes não ousariam, pois perderiam seus clientes. Os homens de prestígio não ousariam, temendo perder seus admiradores. Nem mesmo os balconistas ousariam, pois poderiam ser despedidos. Então resolvi fazer isso eu mesmo.

Há milhões de pessoas que crêem que a Bíblia é a palavra inspirada por Deus – milhões que pensam que este livro é um báculo e um guia, um conselheiro e um consolador; que preenche o presente com paz e o futuro com esperança – milhões que crêem que é a fonte da lei, da justiça e da clemência, e que o mundo deve sua liberdade, riqueza e civilidade aos seus sábios e benignos ensinamentos – milhões que acreditam que este livro é a revelação da sabedoria e do amor de Deus ao cérebro e coração do homem – milhões que consideram este livro como uma tocha que sobrepuja a escuridão da morte e derrama seu brilho em outro mundo – um mundo sem lágrimas.

Entretanto, esquecem-se de sua ignorância e selvageria, de seu ódio à liberdade, de sua perseguição religiosa; lembram-se do céu, mas esquecem-se do calabouço da dor eterna. Esquecem-se de que aprisiona a mente e corrompe o coração. Esquecem-se de que é um inimigo da liberdade intelectual. A liberdade é minha religião. Liberdade das mãos e da mente – no pensar e no trabalhar. Liberdade é uma palavra odiada pelos reis e amaldiçoada pelos papas. É uma palavra que despedaça tronos e altares – que deixa a coroa sem súditos e as mãos estendidas da superstição sem esmolas. Liberdade é a conseqüência, o fruto da justiça – o perfume da clemência. Liberdade é a semente e o solo, o ar e a luz, o orvalho e a chuva do progresso, o amor e a alegria.


I
A origem da Bíblia

Algumas famílias errantes – pobres, esfarrapadas, sem educação, arte ou poder; descendentes daqueles que foram escravizados por quatro séculos; ignorantes como os habitantes da África Central – haviam acabado de escapar de seus senhores ao deserto do Sinai. Seu líder era Moisés, um homem que havia sido criado pela família do faraó e que havia aprendido a lei e a mitologia do Egito. No intuito de controlar seus seguidores, fingiu ser instruído e assistido por Jeová, o Deus desses andarilhos.

Tudo que acontecia era atribuído à interferência desse Deus. Moisés disse que encontrou esse Deus face a face; disse que no topo do Monte Sinai recebeu das mãos desse Deus as tábuas de pedra nas quais, pelas próprias mãos de Deus, os Dez Mandamentos foram escritos, e que, além disso, Jeová o informou sobre quais sacrifícios e cerimônias lhe eram agradáveis e quais leis deveriam governar esse povo.

Deste modo a religião judaica e o Código Mosaico foram estabelecidos.

Agora se alega que essa religião e essas leis foram reveladas e estabelecidas para toda a humanidade.

Naquele tempo esses andarilhos não possuíam comércio com outras nações, não possuíam linguagem escrita, não podiam ler nem escrever. Não possuíam meios para fazer com que outras nações tomassem conhecimento daquela revelação, que assim permaneceu enterrada no linguajar de umas poucas tribos ignorantes, empobrecidas e desconhecidas por mais de dois mil anos.

Muitos séculos após Moisés – o líder – ter morrido, muitos séculos após todos seus seguidores terem morrido, o Pentateuco foi escrito – uma obra de muitos escritores –, e para lhe conferir força e autoridade, afirmou-se que era de autoria de Moisés.

Hoje sabemos que o Pentateuco não foi escrito por Moisés.

Nele são mencionadas cidades que nem existiam na época em que Moisés viveu.

Nele é mencionado dinheiro que só foi cunhado séculos após sua morte.

Assim, muitas das leis não eram compatíveis com viajantes do deserto – leis sobre agricultura, sobre o sacrifício de bois, ovelhas e pombas, sobre tecelagem de roupas, sobre ornamentos de ouro e prata, sobre o cultivo da terra, sobre a colheita, sobre o debulhamento de grãos, sobre casas e templos, sobre cidades de refúgio e sobre muitos outros assuntos que não possuíam qualquer relação possível com uns poucos viajantes famintos.

Não apenas os teólogos inteligentes e honestos admitem que Moisés não foi o autor do Pentateuco; todos admitem que ninguém sabe quem foram os autores ou quem escreveu qual daqueles livros, capítulo ou linha. Sabemos que os livros não foram escritos na mesma geração; que não foram todos escritos por uma única pessoa; que estão repletos de erros e contradições. Admite-se também que Josué não escreveu o livro que leva seu nome, pois nele há referências a eventos que ocorreram muito tempo após sua morte.

Ninguém conhece ou finge conhecer o autor de Juízes; todos sabemos que foi escrito séculos após os juízes terem deixado de existir. Ninguém conhece o autor de Rute, nem o Primeiro ou o Segundo de Samuel; sabemos apenas que Samuel não escreveu os livros que têm seu nome. No 25o capítulo de I Samuel é narrada a criação de Samuel pela feiticeira de Endora.

Ninguém sabe quem foi o autor de I e II Reis ou de I e II Crônicas; tudo que sabemos é que tais livros não têm qualquer valor.

Sabemos que os Salmos não foram escritos por Davi. Neles fala-se da escravidão, a qual somente ocorreu por volta de cinco séculos após Davi ter “dormido” com seus pais.

Sabemos que Salomão não escreveu os Provérbios nem os Cânticos; que Isaías não foi o autor do livro com seu nome; que ninguém conhece o autor de Jó, Eclesiastes, Éster ou qualquer outro livro do Novo Testamento, com exceção de Esdras.

Sabemos que Deus não é citado nem aludido em qualquer aspecto no livro de Éster. Sabemos também que o livro é cruel, absurdo e impossível.

Deus não é mencionado no Cântico dos Cânticos, o melhor livro no Velho Testamento.
E sabemos que Eclesiastes foi escrito por um incrédulo.

Sabemos também que os próprios judeus não haviam decidido quais livros eram inspirados – ou seja, autênticos – até o segundo século após Cristo.

Sabemos que a idéia de inspiração difundiu-se lentamente, e que a inspiração era determinada por indivíduos que tinham certos fins a serem atingidos.


II
O Velho Testamento é inspirado?

Caso fosse, deveria ser um livro que nenhum outro homem – ou grupo de homens – pudesse produzir.

Deveria conter a perfeição da filosofia.

Deveria estar totalmente de acordo com cada fato da natureza.

Não deveria conter erros em astronomia, geologia ou em quaisquer outros assuntos ou ciências.
Sua moral deveria ser a mais sublime e pura.

Suas leis e suas regras para controle de conduta deveriam ser justas, sábias, perfeitas e perfeitamente adequadas aos fins visados.

Não deveria conter quaisquer coisas que tornassem o homem cruel, vingativo ou infame.

Deveria estar repleto de inteligência, de justiça, de pureza, de honestidade, de clemência e de espírito de liberdade.

Deveria opor-se à contenda, à guerra, à escravidão, à cobiça, à ignorância, à credulidade e à superstição.

Deveria desenvolver o intelecto e civilizar o coração.

Deveria satisfazer o coração e a mente dos melhores e dos mais sábios.

Deveria ser verdadeiro.

O Velho Testamento satisfaz esses quesitos?

Há algo no Velho Testamento – na história, na teoria, na lei, na moral, na ciência – acima e além das idéias, das crenças, dos costumes e dos preconceitos de seus autores e dos povos entre os quais viveram?

Há qualquer indício de uma iluminação de origem sobrenatural?

Os antigos hebreus acreditavam que a Terra era o centro do Universo e que o sol, a lua e as estrelas eram manchas no céu.

Com isso a Bíblia concorda.

Pensavam que a Terra era plana, com quatro cantos; que o céu, o firmamento, era sólido – o piso da morada de Jeová.

A Bíblia ensina o mesmo.

Imaginavam que o Sol viajava ao redor da Terra e que, parando-se o sol, o dia poderia ser prolongado.

A Bíblia concorda com isso.

Acreditavam que Adão e Eva foram os primeiros seres humanos; que haviam sido criados poucos anos antes deles – os hebreus –, e que eles próprios eram seus descendentes diretos.

Isso a Bíblia ensina.

Se há algo certo, é que os autores da Bíblia estavam enganados sobre a criação, a astronomia, a geologia; sobre as causas dos fenômenos, a origem do mal e as causas da morte.

Deve-se admitir que, se um Ser infinito é o autor da Bíblia, então deveria saber todas as ciências, todos os fatos, e estar acima de quaisquer erros.

Se, entretanto, existem erros, enganos, falsas teorias, mitos ignorantes e asneiras na Bíblia, então deve ter sido escrita por seres finitos; ou seja, por homens ignorantes e equivocados.

Nada poderia ser mais óbvio que isso.

Por séculos a Igreja insistiu que a Bíblia era absolutamente veraz; que não continha quaisquer erros; que a história da criação era verdadeira; que sua astronomia e geologia estavam de acordo com os fatos; que os cientistas que discordavam do Velho Testamento eram infiéis e ateus.

Agora as coisas mudaram. Os cristãos educados admitem que os autores a Bíblia não estavam inspirados para as ciências. Agora dizem que Deus – ou Jeová – não inspirou os autores desse livro com a finalidade de instruir o mundo sobre astronomia, geologia ou qualquer ciência. Agora admitem que os homens inspirados que escreveram o Velho Testamento desconheciam totalmente qualquer ciência, e que escreveram sobre a Terra, as estrelas, o sol e a lua de acordo com a ignorância da época.

Foram necessários muitos séculos para forçar os teólogos a admitirem isso. Com relutância, cheios de malícia e ódio, os padres se retirarem de campo, deixando a vitória com a ciência.

Então tomaram outra posição.

Declararam que os autores – ou os escritores – da Bíblia estavam inspirados sobre coisas espirituais e morais; que Jeová queria que seus filhos soubessem de sua vontade e de seu amor infinito; que Jeová, vendo seu povo corrompido, ignorante e depravado, desejou torná-lo compassivo, justo, sábio e espiritual, e que a inspiração da Bíblia reside nas idéias sobre leis, na religião que ensina e em suas idéias governamentais.

Esta é a questão agora:

A Bíblia está mais próxima da verdade em suas noções sobre justiça, piedade, moral ou religiosidade do que está em suas noções sobre ciência? A Bíblia é moral?

Ela apóia a escravidão – ela sanciona poligamia.

Será que algum demônio conseguia fazer pior?

Ela é misericordiosa?

Na guerra, ela alçava a bandeira negra; comandava a destruição e o massacre de todos – dos idosos, dos fracos, dos inválidos, das mulheres e dos bebês.

Suas leis são inspiradas?

Centenas de ofensas eram punidas com a morte. Trabalhar nos domingos ou assassinar seu pai na segunda eram crimes de mesmo peso. Na literatura mundial não há qualquer código de leis mais sangrento. A lei da vingança – da retaliação – era a lei de Jeová. Olho por olho, dente por dente, membro por membro.

Isso é selvageria – não filosofia.

Ela é justa e racional?

A Bíblia contrapõe-se à tolerância religiosa – à liberdade religiosa. Todos que discordassem da maioria eram apedrejados até a morte. Investigar era um crime. Maridos eram ordenados a denunciar e ajudar no assassinato de suas esposas descrentes.

É inimiga da arte. “Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra”: esta foi a morte da arte. (cf. Êxodo 20:4)

A Palestina jamais produziu um pintor ou escultor.

A Bíblia é civilizada?

Ela apóia a mentira, o furto, o roubo, o assassinato, a venda de carne estragada a estranhos e até o sacrifício de seres humanos a Jeová.

Ela é filosófica?

Ensina que os pecados das pessoas podem ser transferidos a um animal – a um bode. Faz da maternidade uma ofensa que precisa ser compensada com uma oferenda.

Dar luz a um menino era mau, dar luz a uma menina era duas vezes mau. (cf. Levítico 12)

Produzir o óleo que os padres utilizavam era uma ofensa passível de pena de morte.

O sangue de um pássaro morto em água corrente era considerado medicinal. (cf. Levítico 14)

Um Deus civilizado sujaria seu altar com o sangue de bois, ovelhas e pombas? Transformaria todos padres em açougueiros? Deliciaria-se com o odor de carne queimando?


III
Os Dez Mandamentos

(cf. Êxodo 20:3-17)

Alguns advogados cristãos – alguns juízes eminentes e estúpidos – disseram e ainda dizem que os Dez Mandamentos são o fundamento da lei.

Nada poderia ser mais absurdo. Muito antes de esses mandamentos serem dados havia códigos legislativos na Índia e no Egito – leis contra o assassinado, o perjúrio, o furto, o adultério e a fraude. Tais leis são tão antigas quanto a sociedade humana; tão antigas quanto o amor à vida; tão antigas quanto a indústria; quanto a noção de prosperidade; quanto o amor humano.

Nos Dez Mandamentos todas as idéias boas são antigas; todas as novas são tolas. Se Jeová fosse civilizado, teria dispensado o mandamento sobre guardar os sábados para o santificar, e em seu lugar diria: “Não escravizarás o teu próximo”. Teria omitido aquele sobre o juramento, e diria: “Não terás senão uma única esposa, e a mulher não terá senão um único marido”. Teria deixado de lado aquele sobre imagens esculpidas, e diria: “Não provocarás guerras de extermínio e não desembainharás tua espada senão em legítima defesa”.
Se Jeová fosse civilizado, quão melhores seriam os Dez Mandamentos.

Tudo que chamamos de progresso – a emancipação do homem, o trabalho, a substituição da pena de morte pela prisão e da prisão pela fiança, a destruição da poligamia, o estabelecimento da liberdade de expressão, os direitos de consciência; em suma, tudo que favoreceu o desenvolvimento da civilização humana; todos os frutos da investigação, da observação, da experimentação e do livre-pensamento; tudo que o homem conquistou em benefício do próprio homem desde o fim da Idade das Trevas – tudo isso prescindiu do Velho Testamento.

Permitam-me ilustrar a moral, a misericórdia, a filosofia e a bondade do Velho Testamento:

A história de Acã
(cf.
Josué 7)

Josué tomou a cidade de Jericó. Antes da queda da cidade ele declarou que todos os despojos deveriam ser entregues ao Senhor. Apesar dessa ordem, Acã escondeu uma capa babilônica e um pouco de prata e ouro.

Posteriormente, Josué tentou tomar a cidade de Ai. Ele fracassou e muitos de seus soldados foram mortos. Josué procurou a causa de sua derrota e descobriu que Acã havia escondido uma capa babilônica, duzentos siclos de prata e uma cunha de ouro.

Diante disso, Acã confessou.

Então imediatamente Josué tomou Acã, seus filhos, filhas, esposa, bois e ovelhas, apedrejou-os todos até a morte, e então queimou seus corpos.

Nada indica que seus filhos e filhas haviam cometido qualquer crime. Certamente, os bois e ovelhas não deveriam ser apedrejados à morte pelo crime de seu proprietário. Essa foi a justiça, a clemência de Jeová!

Após Josué ter cometido esse crime, com a ajuda de Jeová, ele capturou a cidade de Ai.

A história de Eliseu
(cf.
II Reis 2:23-24)

“Então subiu dali a Betel; e, subindo ele pelo caminho, uns meninos saíram da cidade, e zombavam dele, dizendo: Sobe, calvo; sobe, calvo!”

“E, virando-se ele para trás, os viu, e os amaldiçoou em nome do Senhor. Então duas ursas saíram do bosque, e despedaçaram quarenta e dois daqueles meninos.”

Esse foi a obra do bom Deus – do misericordioso Jeová!

A história de Daniel
(cf.
Daniel 6)

O rei Dario honrou e exaltou Daniel, e os príncipes nativos estavam enciumados. Então persuadiram o rei a assinar um decreto – válido por trinta dias – que condenaria à cova dos leões qualquer homem que pedisse algo qualquer deus ou homem, salvo o rei Dario.

Posteriormente, esses homens descobriram que Daniel, com a face voltada a Jerusalém, rezava três vezes ao dia para Jeová.

Por isso, Daniel foi atirado à cova dos leões; uma pedra foi colocada sobre a boca da cova e ela foi selada com o selo real.

O rei teve uma noite inquieta. Na manhã seguinte foi à cova dos leões e chamou por Daniel. Daniel respondeu e disse ao rei que Deus havia enviado seus anjos e fechado as bocas dos leões.
Daniel foi libertado vivo e ileso, e o rei converteu-se e passou a acreditar no Deus de Daniel.

Dario, sendo então fiel ao verdadeiro Deus, mandou os homens que haviam acusado Daniel, suas esposas e filhos para a cova dos leões.

“...e foram lançados na cova dos leões, eles, seus filhos e suas mulheres; e ainda não tinham chegado ao fundo da cova quando os leões se apoderaram deles, e lhes esmigalharam todos os ossos.”

O que as esposas e crianças fizeram? Que ofensa cometeram contra o rei Dario – o fiel de Jeová? Quem protegeu Daniel? Jeová! Quem deixou de proteger as esposas e crianças inocentes? Jeová!

A história de José
(cf.
Gênesis 41)

O faraó teve um sonho, e este sonho foi interpretado por José.

De acordo essa interpretação, haveria no Egito sete anos de fartura, seguidos de sete anos de fome. José aconselhou ao faraó comprar todo o excedente dos sete anos de fartura e armazená-lo para os anos de fome.

O faraó nomeou José como seu ministro – ou agente –, e ordenou que comprasse a produção excedente de grãos dos anos de fartura.

Então veio a fome. O povo pediu ajuda ao rei, o qual disse que deveriam procurar por José e fazer o que ele ordenasse.

José vendeu trigo aos egípcios até que seu dinheiro se esgotasse – até ficar com todo ele.

Após o dinheiro ter acabado, o povo disse: “Dê-nos trigo e lhe daremos nosso gado”.

José deu-lhes trigo até que todo o gado, os cavalos e os carneiros fossem dados a ele.

Então o povo disse: “Dê-nos trigo e lhe daremos nossas terras”.

Então José deu-lhes trigo até que todas terras fossem dadas a dele.

Mas a fome continuou, e assim os pobres infelizes venderam a si mesmos, tornando-se servos do faraó.

Então José lhes deu sementes e fez um pacto com eles, segundo o qual deveriam eternamente dar um quinto de tudo que produzissem ao faraó.

Quem permitiu a José interpretar o sonho do faraó? Jeová! Ele já sabia antecipadamente que José usaria aquela informação para extorquir e escravizar o povo do Egito? Sim. Quem produziu a fome? Jeová!

É perfeitamente nítido que os judeus não viam Jeová como o Deus do Egito – como o Deus de todo o mundo. Era o Deus deles, e tão-somente. Outras nações tinham deuses, mas Jeová era o maior de todos. Ele odiava outras nações e outros deuses, detestava todas as religiões exceto aquela que o adorava.


IV
Que valor tem tudo isto?

Algum estudioso do cristianismo poderia nos explicar qual é o valor do Gênesis?

Sabemos que não é verdadeiro – que se contradiz. Há duas versões da criação, uma no primeiro e outra no segundo capítulo.

Na primeira, os pássaros e bestas foram criados antes do homem.

Na segunda, o homem é criado antes dos pássaros e bestas.

Na primeira, as aves são feitas a partir da água.

Na segunda, as aves são feitas a partir da terra.

Na primeira, Adão e Eva são criados juntos.

Na segunda, primeiramente Adão foi feito; depois as bestas e os pássaros, e então Eva foi criada a partir de uma das costelas de Adão.

Essas histórias são muito mais antigas que o Pentateuco.

Versão persa: Deus criou o mundo em seis dias, um homem chamado Adama, uma mulher chamava Eva, e então descansou.

As histórias dos etruscos, babilônios, fenícios, caldeus e egípcios são muito parecidas.

Os persas, gregos, egípcios, chineses e hindus têm seu Jardim do Éden e sua Árvore da Vida.
Assim, os persas, os babilônios, os núbios, o povo do sul da Índia, todos tinham sua história da sucumbência do homem e da serpente astuciosa.

Os chineses dizem que o pecado veio ao mundo através da desobediência da mulher. E mesmo os taitianos acreditam que o homem foi criado da terra, e a primeira mulher de um de seus ossos.

Todas essas histórias são igualmente autênticas e de idêntico valor ao mundo, e todos os seus autores estavam igualmente inspirados.

Sabemos também que a história do dilúvio é muito mais antiga que o livro do Gênesis; além disso, sabemos que não é verdadeira.

Sabemos que a história do Gênesis é copiada da versão caldéia. Nela você também encontra tudo sobre a chuva, a arca, os animais, a pomba que foi enviada três vezes e a montanha na qual a arca repousa.

Ou seja, hindus, chineses, persas, gregos, mexicanos e escandinavos têm essencialmente a mesma história.

Também sabemos que o relato sobre a Torre de Babel é uma fábula ignorante e infantil.

Então o que resta neste inspirado livro do Gênesis? Contém alguma palavra que visa o desenvolvimento do coração ou da mente? Contém algum pensamento elevado – qualquer grande princípio, alguma poesia –, qualquer palavra que conduza à prosperidade?

Contém algo além de uma enfadonha e detalhada descrição de coisas que nunca aconteceram?
Há algo no Êxodo que pretende tornar os homens generosos, bondosos e nobres?

O que há de bom em ensinar a crianças que Deus torturou o gado inocente dos egípcios – ferindo-os mortalmente a pedradas – por culpa dos pecados do faraó?

Será que nos tornaríamos compassivos se acreditássemos que Deus matou os primogênitos dos egípcios – primogênitos de um povo pobre e sofrido, da pobre moça trabalhando nos moinhos – por causa da maldade do rei?

Podemos acreditar que os deuses egípcios fizeram milagres? Transformaram água em sangue e bastões em serpentes?

No Êxodo não há sequer uma idéia original ou uma linha que tenha valor.

Sabemos – se é que sabemos alguma coisa – que este livro foi escrito por selvagens – selvagens que acreditavam na escravidão, na poligamia e nas guerras de extermínio. Sabemos que a história contada é impossível e que os milagres relatados nunca ocorreram. Este livro admite que há outros deuses além de Jeová. No 18o(1) capítulo há este verso: “Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses; até naquilo em que se houveram arrogantemente contra o povo”.

Neste livro sagrado ensina-se o dever do sacrifício humano – do sacrifício de bebês.

No 22o capítulo há este comando: “Não tardarás em trazer ofertas da tua ceifa e dos teus lagares. O primogênito de teus filhos me darás”.

O Êxodo foi um trampolim ou uma travanca à espécie humana?

Subtraindo-se do Êxodo as leis comuns às outras nações, o que resta nele de valor?

Há algo de importância em Levítico? Há algum capítulo que mereça ser lido? Que interesse temos nas roupas dos padres, nas cortinas e velas dos tabernáculos, nas pinças e pás do altar ou no óleo utilizado pelos levitas?

Para que serve o código cruel, as punições amedrontadoras, as maldições, as falsidades e os milagres deste livro ignorante e infame?

E o que há no livro de Números – com seus sacrifícios e água de ciúmes, seus pães e colheres, suas crianças e flor de farinha, seus óleos e castiçais, seus pepinos, cebolas e manás – que ajuda e instrui a humanidade?

Que interesse temos na rebelião de Corá, na água da amargura, nas cinzas da novilha vermelha, na serpente de bronze, na água que seguiu o povo para cima e para baixo por quarenta anos e na jumenta inspirada do profeta Balaão?

Acaso essas absurdidades e crueldades – essas superstições pueris e selvagens – ajudaram a civilizar o mundo?

Há qualquer coisa em Josué – em suas guerras, em seus assassinatos e massacres, em suas espadas gotejando sangue de mães e bebês, em suas torturas e mutilações, em sua fraude e fúria, em seu ódio e vingança – cuja finalidade é melhorar o mundo?

Cada capítulo deste livro não é um verdadeiro choque ao coração de um homem bondoso? Será um livro que crianças deveriam ler?

O livro de Josué é impiedoso como a fome, feroz como o coração de uma besta selvagem. É uma história, uma justificativa, uma santificação de praticamente qualquer tipo de atrocidade.

O livro de Juízes trata do mesmo assunto, nada além de guerra e matança; a horrível história de Jael e Sísera; de Gideão e suas trombetas e cântaros; de Jefté e sua filha, que ele matou para agradar Jeová.

Nele encontramos a história de Sansão, na qual um deus-sol é transformado em um hebreu gigante.

Leiam este livro de Josué, leiam sobre morticínio de mulheres, esposas, mães e bebês, leiam seus milagres impossíveis, leiam seus crimes cruéis – e tudo feito de acordo com os Dez Mandamentos de Jeová –, e então me digam se este livro foi feito para nos tornar compreensivos, generosos e bondosos.

Admito que a historia de Rute, em alguns aspectos, é bela e tocante; que é contada com naturalidade, e que seu amor por Noêmi era profundo e puro. Mas em matéria de namoro, dificilmente aconselharíamos nossas filhas a seguir o exemplo de Rute. Devemos lembrar que Rute era uma viúva.

Há algo que valha a pena ser lido no primeiro e segundo livros de Samuel? Deveria um profeta de Deus despedaçar um rei cativo? A história da arca, de sua captura e recuperação, tem qualquer importância para nós? É uma atitude correta, justa e clemente matar cinqüenta mil homens porque olharam uma caixa? Qual a utilidade das guerras de Saul e Davi e das histórias de Golias e da feiticeira de Endora? Por que Jeová deveria ter matado Uzá por ter estendido a mão para firmar a arca e perdoado Davi por assassinar Urias e roubar sua esposa?

De acordo com “Samuel”, Davi fez um censo do povo. Isso suscitou a ira de Jeová, que como punição permitiu a Davi escolher sete anos de fome, três meses fugindo da perseguição de seus inimigos ou três dias de pestilência. Davi, tendo confiança em Deus, escolheu os três dias de pestilência; e então Deus – o misericordioso – matou setenta mil homens pelo pecado de Davi.

Ante as mesmas circunstâncias, o que um diabo teria feito?

Há algo no primeiro e segundo livros de Reis que sugere a idéia de inspiração?

Quando Davi está morrendo, diz ao seu filho Salomão para matar Joabe – que não deixasse suas cãs descerem à sepultura em paz. Com seu último suspiro, ordena que seu filho faça com que as cãs de Simei desçam à sepultura com sangue. Após proferir essas amáveis palavras, o bom Davi, o homem do coração de Deus, dormiu com seus pais.

Seria necessária inspiração para que um homem escrevesse a história da construção do templo, a história da visita da rainha de Sabá ou relatasse o número de esposas de Salomão?

Que nos importa mão seca Jeroboão, a profecia de Jeú ou a história de Elias e os corvos?

Como podemos acreditar que Elias trouxe chamas do céu ou que foi até o último Paraíso em um carro de fogo?

Podemos acreditar na multiplicação do azeite por Eliseu, que um exército foi ferido com cegueira ou que um machado flutuou na água?

Será que ler sobre a decapitação dos setenta filhos de Acabe, sobre o vazamento dos olhos de Zedequias e o assassinato de seus filhos nos torna mais civilizados? Há uma palavra sequer no primeiro e segundo livros de Reis que se destina a melhorar o homem?

O primeiro e segundo livros de Crônicas não passam de uma repetição do que é dito no primeiro e segundo livros de Reis. As mesmas velhas histórias – com algumas reduções, algumas adições, mas que não as tornam nem melhores nem piores.

O livro de Esdras é irrelevante. Conta-nos que Ciro, o rei da Pérsia, emitiu uma proclamação para a construção do templo de Jerusalém, e que declarou ser Jeová o único e verdadeiro Deus.
Nada poderia ser mais absurdo. Esdras nos fala sobre o retorno do cativeiro, a construção do Templo, a dedicatória, umas poucas orações, e isso é tudo. Esse livro não tem qualquer importância, é inútil.

Neemias trata do mesmo assunto, apenas fala sobre a construção do muro, as reclamações do povo quanto aos impostos, a lista daqueles que retornaram da Babilônia, um catálogo daqueles que habitavam Jerusalém e a dedicatória dos muros.

Nenhuma palavra do livro de Neemias merece ser lida.

Então vem o livro de Ester: nele é dito que o rei Assuero estava embriagado; que ordenou à sua rainha, Vasti, que se mostrasse a ele a aos convidados. Mas ela recusou-se.

Isso enfureceu o rei, e este ordenou que de cada província fossem trazidas as moças mais bonitas, para que ele pudesse escolher uma para ocupar o lugar de Vasti.

Entre outras, foi trazida Ester, uma judia. Ela foi escolhida, tornando-se a esposa do rei.

Um cavalheiro chamado Hamã desejava que todos os judeus fossem destruídos, e o rei, não tendo conhecimento de que Éster era uma judia, assinou um decreto para que os judeus fossem mortos.

Através dos esforços de Mordecai e Ester o decreto foi anulado e os judeus salvaram-se.

Hamã preparou uma forca para a execução de Mordecai, mas a boa Ester conseguiu fazer com que Hamã e seus dez filhos fossem enforcados na forca que ele havia construído, e os judeus foram autorizados a matar mais de setenta e cinco mil súditos do rei.

Essa é a história inspirada de Ester.

No livro de Jó encontramos alguns sentimentos elevados, alguns pensamentos sublimes e alguns tolos, algo sobre a maravilha e a perfeição da natureza, as alegrias e tristezas da vida; mas a história é infame.

Alguns Salmos são bons, muitos são indiferentes e poucos são infames. Neles estão misturados vícios e virtudes. Há versos que elevam e versos que degradam. Há orações de perdão e orações de vingança. Em toda a literatura mundial não existe nada mais inumano e infame que o 109o salmo.

Nos provérbios há muita sagacidade, muitas máximas expressivas e prudentes, muitos dizeres sábios. As mesmas idéias são exprimidas de várias maneiras – a sabedoria da economia e do silêncio, os perigos da vaidade e da ociosidade. Alguns são triviais, alguns são tolos e muitos são sábios. Esses provérbios não são generosos – não são altruísticos. Dizeres de mesma natureza podem ser encontrados em todas nações.

Eclesiastes é o livro mais profundo da Bíblia. Foi escrito por um descrente – um filósofo –, um agnóstico. Retire-se dele as interpolações, e estará de acordo com o pensamento do século XIX. Nesse livro estão as passagens mais filosóficas e poéticas da Bíblia.

Após atravessar o deserto de mortes e crimes – após ler o Pentateuco, Josué, Juízes, Samuel, Reis e Crônicas –, é um encanto encontrar esse jardim de poesia chamado “Cântico dos Cânticos”. Um drama de amor – de amor humano –, um poema sem Jeová, um poema nascido do coração e verdadeiro para os instintos divinos da alma.

“Eu dormia, mas o meu coração velava.” (cf. Cântico dos cânticos 5:2)

Isaías é o trabalho de vários. Suas palavras pomposas, sua imagética vaga, suas profecias e maldições, seus devaneios contra reis e nações, seu escárnio da sabedoria humana e seu ódio à alegria não possuem a menor tendência de promover o bem-estar do homem.

Neste livro encontra-se o mais absurdo de todos os milagres. A sombra no relógio volta dez graus como sinal de que Jeová havia adicionado quinze anos à vida de Ezequias. (cf. Isaías 38)

Com este milagre o mundo – que gira de oeste para leste a mais de mil milhas por hora – não apenas para, mas de fato retrocede até que a sombra do relógio tenha voltado dez graus!

Há em todo o mundo algum indivíduo inteligente que acredite nesta mentira grosseira?

Jeremias não contém nada de importância – nenhum fato de valor.

Nada além de procura por erros, lamentações, resmungos, gemidos, maldições e promessas; nada além de fome e oração, da prosperidade do mal, da ruína dos judeus, do cativeiro e o retorno, e finalmente Jeremias, o traidor, no tronco e na prisão.

O livro de Lamentações é simplesmente a continuação dos delírios do mesmo pessimista insano; nada além de pó, trapos, cinzas, lágrimas, uivos, xingamentos e insultos.

E Ezequiel – comendo manuscritos, profetizando cerco e desolação, com visões de brasas de fogo, de querubins, da figura da caldeira fervente e da ressurreição de ossos secos – também não possui qualquer valor, nenhum valor imaginável.

Assim como Voltaire, digo que se há alguém que admira Ezequiel, então deveria ser compelido a jantar com ele.

Daniel é um sonho conturbado – um pesadelo.

Que utilidade tem este livro, com sua imagem com cabeça de ouro, com peito e braços de prata, com ventre e coxas de bronze, com pernas de ferro e com pés em parte de ferro e em parte de barro; com suas escrituras na parede, sua cova dos leões e sua visão do carneiro e do bode?

Há algo e ser aprendido de Oséias e sua esposa? Há algo proveitoso em Joel, em Amós, em Obadias? Há algo a ser extraído da história de Jonas e o peixe que o engoliu? Será possível que Deus é realmente o autor de Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Malaquias e Zaracias, com seus cavalos vermelhos, seus quatro chifres, seus quatro ferreiros, seu rolo voador, seus montes de bronze e sua pedra com sete(2) olhos?

Estes livros “inspirados” trouxeram qualquer benefício ao homem?

Nos ensinaram como cultivar a terra, construir casas, tecer roupas ou preparar alimento?

Nos ensinaram a pintar quadros, talhar estátuas, construir pontes, navios ou qualquer coisa bela ou útil? Foi do Velho Testamento que derivamos nossas noções de governo, de liberdade de culto, de liberdade de pensamento? Colhemos destes livros qualquer idéia que contribuiu à ciência? Há nestas “sagradas escrituras” uma palavra, uma linha que tenha contribuído à riqueza, à inteligência ou à felicidade da humanidade?

Há algum livro no Velho Testamento tão divertido quanto “Robinson Crusoe”, “As Viagens de Gulliver” ou “Peter Wilkins e sua Esposa Voadora”? Será que o autor de Gênesis sabia tanto sobre a natureza quanto Humboldt, Darwin ou Haeckel? Será que o chamado Código Mosaico é tão sábio ou tão compassivo quanto o código de quaisquer nações civilizadas? Os escritores de Reis e Crônicas foram grandes historiadores e escritores assim como Gibbon e Draper? Será Jeremias ou Habacuque igual a Dickens ou Thackeray? Os autores de Jó e Salmos são comparáveis a Shakespeare? Por que deveríamos atribuir o melhor ao homem e o pior a Deus?


V
Jeová era um Deus do amor?

Será que estas palavras vieram de um coração cheio de amor?

“quando o Senhor teu Deus tas tiver entregue, e as ferires, totalmente as destruirás; não farás com elas pacto algum, nem terás piedade delas” (cf. Deuteronômio 7:2)

“Males amontoarei sobre eles, esgotarei contra eles as minhas setas” (cf. Deuteronômio 32:23)

“Consumidos serão de fome, devorados de raios e de amarga destruição; e contra eles enviarei dentes de feras, juntamente com o veneno dos que se arrastam no pó” (cf. Deuteronômio 32:24)

“Por fora devastará a espada, e por dentro o pavor, tanto ao mancebo como à virgem, assim à criança de peito como ao homem encanecido” (cf. Deuteronômio 32:25)

“Fiquem órfãos os seus filhos, e viúva a sua mulher! Andem errantes os seus filhos, e mendiguem; esmolem longe das suas habitações assoladas. O credor lance mão de tudo quanto ele tenha, e despojem-no os estranhos do fruto do seu trabalho! Não haja ninguém que se compadeça dele, nem haja quem tenha pena dos seus órfãos!” (cf. Salmos 109:9-12).

“comerás o fruto do teu ventre, a carne de teus filhos e de tuas filhas” (cf. Deuteronômio 28:53)

“O céu que está sobre a tua cabeça será de bronze, e a terra que está debaixo de ti será de ferro” (cf. Deuteronômio 28:23)

“Maldito serás na cidade, e maldito serás no campo” (cf. Deuteronômio 28:16)

“De sangue embriagarei as minhas setas” (cf. Deuteronômio 32:42)

“eu me rirei no dia da vossa calamidade” (cf. Provérbios 1:26)

Essas maldições e ameaças vieram de um coração cheio de amor ou da boca da selvageria?

Jeová era um deus ou um diabo?

Por que deveríamos colocar Jeová acima de todos os outros deuses?

Será que a ignorância e o medo do homem já conceberam algo mais monstruoso?

Será que bárbaros de quaisquer terras, de quaisquer épocas, já adoraram um deus mais cruel?

Brahma era mil vezes mais nobre, assim como Osíris, Zeus e Júpiter. E também a suprema divindade dos Astecas, à qual se oferecia apenas o perfume de flores. O pior deus dos hindus, com seu colar de crânios e seu bracelete de cobras vivas, parece bondoso e compassivo quando posto lado a lado com Jeová.

Comparado a Marco Aurélio, quão pequeno Jeová parece. Comparado com Abraham Lincoln, quão cruel, quão desprezível é este deus.


VI
A administração de Jeová

Ele criou o mundo, o exército do céu [estrelas], um homem e uma mulher – e colocou estes em um jardim. Então a serpente os enganou, e assim foram expulsos e forçados a ganhar seu próprio pão.

Jeová ficou contrariado.

Tentou novamente. Ficou aproximadamente dezesseis séculos tentando civilizar seu povo.

Nenhuma escola, nenhuma igreja, nenhuma Bíblia, nenhum tratado – ninguém os ensinou a ler ou escrever. Nem sinal dos Dez Mandamentos. O povo tornava-se pior e pior, até que o misericordioso Jeová decidiu enviar o dilúvio para afogar todas as criaturas, salvo Noé e sua família – oito no total.

Então ele recomeçou. Mudou seus hábitos alimentares. De início Adão e Eva eram vegetarianos, mas após o dilúvio Jeová disse: “Tudo quanto se move e vive vos servirá de mantimento” (cf. Gênesis 9:3) – cobras e urubus.

Mas falhou novamente, e na Torre de Babel dispersou e espalhou os povos.

Percebendo que não conseguiria administrar todos os povos, decidiu dedicar-se a uns poucos; escolheu Abraão e seus descendentes. Malogrou novamente. Seus escolhidos foram capturados pelos egípcios e escravizados por quatro séculos.

Ele tentou novamente – resgatou-os do Faraó e direcionou-os à Palestina.

Mudou então sua dieta, permitindo-os comer apenas os animais de unhas fendidas e que se alimentassem de grama.

Falhou novamente.

O povo o odiava; preferia a escravidão do Egito à liberdade de Jeová. Então os deixou vagando até que quase todos que tinham vindo do Egito estivessem mortos. E tentou novamente – levou-os à Palestina e os colocou sob governo dos Juízes.

Isso também foi um fracasso – nenhuma escola, nenhuma Bíblia. Então tentou os réis, que eram em sua maioria idólatras.

Então seu povo escolhido foi conquistado e levado em cativeiro pelos babilônios.

Outro insucesso.

Eles retornaram, e Jeová experimentou os profetas – berradores e gemedores –, mas o povo tornava-se cada vez pior. Nada de escolas, ciências, artes ou comércio. Então Jeová fez-se carne – nascido de uma mulher –, e viveu entre o povo que vinha tentando civilizar há milênios. Então o povo, seguindo as leis que o próprio Jeová havia lhes dado, acusou este Jeová-homem – este Cristo – de blasfêmia; o acusaram, julgaram e mataram.

Jeová falhou novamente.

Então abandonou os judeus e concentrou sua atenção no resto do mundo.

E agora os judeus, apesar abandonados por Jeová e perseguidos pelos cristãos, são o povo mais próspero de Terra. Novamente, uma falha.

Que administração!


VII
O Novo Testamento

Quem escreveu o Novo Testamento?

Estudiosos do cristianismo admitem que não sabem. Admitem que, se os quatro evangelhos tivessem sido escritos por Mateus, Marcos, Lucas e João, então estariam em hebraico. Entretanto, nenhum manuscrito de quaisquer dos evangelhos jamais foi encontrado em hebraico. Todos foram escritos em grego. Assim, teólogos educados admitem que as Epístolas – Tiago e Judas – foram escritas por pessoas que desconheciam totalmente os quatro evangelhos. Nestas duas epístolas não é feita qualquer alusão aos evangelhos e nem aos milagres que relatam.

A mais antiga referência encontrada a um dos quatro evangelhos foi feita cerca de cento e oito anos após o nascimento de Cristo, e os quatro evangelhos foram pela primeira vez nomeados e citados no começo do terceiro século, cerca de cento e setenta anos após a morte de Cristo.

Hoje sabemos que havia muitos outros evangelhos além dos quatro, alguns dos quais perderam-se. Havia o evangelho de Paulo, dos Egípcios, dos Hebreus, da Verdade, de Judas, de Tadeu, de Infância, de Tomé, de Maria, de André, de Nicodemos, de Marcião e vários outros.

Havia os Atos de Pilatos, de André, de Maria, de Paulo, de Tecla e muitos outros; também havia um livro chamado O Pastor de Hermas.

A princípio nenhum desses livros era considerado inspirado. Achava-se que o Velho Testamento era divino, mas os livros que atualmente constituem o Novo Testamento eram considerados meras produções humanas. Hoje temos consciência de nossa ignorância quanto aos verdadeiros autores dos quatro evangelhos.

A questão é: os autores destes quatro evangelhos estavam inspirados?

Se estavam, então os quatro evangelhos necessariamente são verdadeiros. E se são verdadeiros, obviamente devem concordar entre si.

Os quatro evangelhos não concordam.

Mateus, Marcos e Lucas desconheciam totalmente a recompensa e a salvação através da fé. Conheciam apenas o evangelho da boa ação – da caridade. Ensinam que, se perdoarmos aos outros, Deus nos perdoará.

Com isso o Evangelho de João não concorda.

Neste evangelho é dito que precisamos crer no Senhor Jesus Cristo; que precisamos nascer novamente; que precisamos beber o sangue e comer a carne de Cristo. Neste evangelho encontramos a doutrina da recompensa e a de que Cristo morreu e sofreu por nós.

Este evangelho é completamente divergente dos outros três. Se os outros três são verdadeiros, então o Evangelho de João é falso. Se o Evangelho de João foi escrito por um homem inspirado, então os autores dos outros três careciam de inspiração. Para isto não há escapatória. É impossível que os quatro sejam verdadeiros.

É evidente que há muitas interpolações nos quatro evangelhos.

Por exemplo, no 28o capítulo de Mateus é dito que os soldados da tumba de Cristo foram subornados para dizerem que os discípulos de Jesus furtaram seu corpo enquanto eles – os soldados – dormiam.

Isso é claramente uma interpolação, uma interrupção na narrativa.

O 10o verso deveria ser seguido pelo 16o.

O 10o verso: “Então lhes disse Jesus: Não temais; ide dizer a meus irmãos que vão para a Galiléia; ali me verão”.

O 16o verso: “Partiram, pois, os onze discípulos para a Galiléia, para o monte onde Jesus lhes designara”.

A história sobre os soldados está contida nos versos 11, 12, 13, 14 e 15. É uma interpolação – uma reflexão posterior, muito posterior. O 15o verso demonstra isto.

O 15o verso: “Então eles, tendo recebido o dinheiro, fizeram como foram instruídos. E essa história tem-se divulgado entre os judeus até o dia de hoje”.

Certamente esta passagem não estava no evangelho original, e certamente o 15o verso não foi escrito por um judeu. Nenhum judeu escreveria isto: “E essa história tem-se divulgado entre os judeus até o dia de hoje”.

Marcos, João e Lucas nunca souberam que os soldados foram subornados; ou, se souberam, não julgaram que tal fato merecia ser registrado. Ou seja, as passagens sobre a Ascensão de Jesus Cristo em Marcos e Lucas são interpolações. Mateus não diz qualquer coisa sobre a Ascensão.

Certamente nunca houve um milagre de maiores proporções, e mesmo assim Mateus, que estava presente – que viu o Senhor ascender aos céus e desaparecer –, não o julgou digno de menção.

Por outro lado, as últimas palavras de Cristo, de acordo com Mateus, contradizem a Ascensão: “e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos”. (cf. Mateus 28:20)

João, que estava presente, se é que Cristo realmente ascendeu, não diz sequer uma palavra sobre o assunto.

Quanto à Ascensão, os evangelhos não concordam.

A seguir está transcrita a última conversa de Cristo com seus apóstolos segundo Marcos: “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado. E estes sinais acompanharão aos que crerem: em meu nome expulsarão demônios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e estes serão curados. Ora, o Senhor, depois de lhes ter falado, foi recebido no céu, e assentou-se à direita de Deus.” (cf. Marcos 16:15-19)

Será possível que tal descrição foi escrita por um indivíduo que testemunhou este milagre?

O milagre foi descrito por Lucas desta forma: “E aconteceu que, enquanto os abençoava, apartou-se deles; e foi elevado ao céu”. (cf. Lucas 24:51)

Nos Atos é dito que: “Tendo ele dito estas coisas, foi levado para cima, enquanto eles olhavam, e uma nuvem o recebeu, ocultando-o a seus olhos”. (cf. Atos 1:9)

Nem Lucas, Mateus, João ou o autor de Atos ouviram qualquer palavra da conversa atribuída a Cristo por Marcos. O fato é que a Ascensão de Cristo não foi alegada pelos seus discípulos.

A princípio Cristo era apenas um homem – e nada mais. Maria era sua mãe, José era seu pai. A genealogia de seu pai, José, foi apresentada para demonstrar que ele tinha o mesmo sangue de Davi.

Então se alegou que ele era o filho de Deus e que mãe era uma virgem – e permaneceu virgem até sua morte.

Então se alegou que Cristo levantou dentre os mortos e ascendeu corporalmente ao céu.

Foram necessários muitos anos para que essas absurdidades se apoderassem das mentes dos homens.

Se Cristo levantou-se dentre os mortos, por que não apareceu aos seus inimigos? Por que não fez uma visita a Caifás, o sumo sacerdote? Por que não fez outra entrada triunfante em Jerusalém?

Se realmente ascendeu, por que não o fez em público, na presença de seus perseguidores? Por que o maior dos milagres deveria ser feito em segredo, num canto?

Foi um milagre que poderia ter sido visto por uma vasta multidão – um milagre impossível de ser simulado –, que teria convencido centenas de milhares.

Após a história da Ressurreição, a Ascensão tornou-se uma necessidade: precisavam se livrar do corpo.

Há muitas outras interpolações nos evangelhos e epístolas.

Pergunto novamente: o Novo Testamento é verdadeiro? Será que alguém ainda acredita que no nascimento de Cristo houve uma saudação celestial; que uma estrela guiou os magos do oriente; que Herodes matou todos os meninos de dois anos para baixo que havia em Belém?

Os evangelhos estão repletos de narrativas de milagres. Eles realmente ocorreram?

Mateus relata os pormenores de aproximadamente vinte e dois milagres, Marcos cerca de dezenove, Lucas ao redor dezoito e João por volta de sete.

De acordo com os evangelhos, Cristo curou doenças, expulsou demônios, repreendeu o mar, curou os cegos, alimentou multidões com cinco pães e dois peixes, caminhou sobre as águas, amaldiçoou uma figueira, transformou água em vinho e ressuscitou os mortos.

Mateus é o único que fala sobre a estrela e os magos – o único que menciona o assassinato dos bebês.

João é o único que diz algo sobre a ressurreição de Lázaro e Lucas é o único que narra a ressurreição do filho da viúva de Naim.

Como seria possível comprovar tais milagres?

Os judeus, entre os quais diz-se que os milagres ocorreram, não acreditavam neles. Os doentes, os paralisados, os leprosos e os cegos que foram curados não se tornaram seguidores de Cristo. Nunca mais se ouviu falar daqueles que foram ressuscitados.

Será que qualquer homem inteligente acredita na existência de demônios? Os autores dos três evangelhos certamente acreditavam. João não diz nada sobre Cristo ter expulsado demônios, mas Mateus, Marcos e Lucas dão muitos exemplos.

Será que qualquer homem de bom senso acredita que Cristo expulsava demônios? Se os discípulos o disseram, estavam enganados. Se cristo o disse, era um maluco ou um impostor.

Se as passagens sobre a expulsão de demônios são falsas, então os escritores eram ignorantes ou desonestos. Se seus escritos revelam ignorância, então não estavam inspirados. Se tinham consciência de que estavam escrevendo falsidades, então também não estavam inspirados. Se o que escreveram é uma inverdade – não importa se o sabiam ou não – certamente não havia inspiração.

Naquela época acreditava-se que a paralisia, a epilepsia, a surdez, a insanidade e muitas outras doenças eram causadas por demônios; acreditava-se que os demônios apossavam-se e viviam nos corpos de homens e mulheres. Cristo acreditava nisso, pregou isso e fingiu curar doenças expulsando os demônios dos doentes e insanos. Se hoje sabemos alguma coisa, é que doenças não são causadas pela presença de demônios. Se hoje sabemos alguma coisa, é que demônios não habitam os corpos dos homens.

Se Cristo disse e fez o que os autores dos três evangelhos relatam, então Cristo estava enganado.
Se estava enganado, certamente não era Deus. Se estava enganado, certamente não estava inspirado.

Será verdade que o Demônio tentou Cristo?

Será verdade que o Demônio levou Cristo ao topo do templo e tentou induzi-lo a pular ao chão?

Como tais milagre podem ser comprovados?

Os mais importantes não escreveram nada, Cristo não escreveu nada, o Demônio permaneceu em silêncio.

Como podemos ter certeza de que o Demônio tentou Cristo? Quem redigiu a narração? Não sabemos. Como o autor tomou conhecimento do fato? Não sabemos.

Alguém, a dezessete séculos atrás, disse que o Demônio tentou Deus; que o Demônio levou Deus ao topo do templo e tentou induzi-lo a pular, mas Deus foi mais esperto que o Demônio.

É apenas essa a evidência que temos.

Será que na literatura mundial há algo mais perfeitamente imbecil?

Pessoas inteligentes não acreditam mais em bruxas, magos, fantasmas ou demônios, e estão plenamente satisfeitas com a idéia de que cada palavra do Novo Testamento sobre a expulsão de demônios é totalmente falsa.

Podemos acreditar que Cristo ressuscitou os mortos?

A viúva de Naim está acompanhando cortejo de seu filho até a tumba. Cristo interrompe o funeral e ressuscita o jovem rapaz e o devolve aos braços de sua mãe.

Este jovem rapaz desaparece. Nunca mais se ouve falar dele. Ninguém parece se interessar pelo homem que retornou da morte. Lucas é o único que conta esta história. Talvez Mateus, Marcos e João nunca tenham ouvido falar dela, ou não a acreditaram, e portanto não a registraram.

João diz que Lázaro foi ressuscitado; Mateus, Marcos e Lucas não falam qualquer coisa sobre isso.

Foi um milagre ainda mais belo que o ressuscitamento do filho da viúva. Este último não tinha sido sepultado por dias, estava apenas a caminho de sua tumba, mas Lázaro estava de fato morto, já tinha começado a decompor-se.

Lázaro não suscitou o menor interesse. Ninguém perguntou a ele sobre o outro mundo. Ninguém perguntou sobre seus amigos mortos. Quando morreu pela segunda vez, ninguém disse: “Ele não está temente. Já atravessou esta estrada e sabe exatamente para onde está indo”.

Não acreditamos nos milagres de Maomé, contudo eles são tão bem comprovados quanto estes.
Não acreditamos nos milagres feitos por Joseph Smith(3), e as evidências são muito maiores, muito melhores.

Se hoje aparecesse um homem fingindo ressuscitar os mortos, fingindo expulsar demônios, o consideraríamos um maluco. O que, então, podemos dizer a respeito de Cristo? Se quisermos salvar sua reputação, seremos forçados a admitir que ele nunca fingiu ressuscitar os mortos, que ele nunca alegou expulsar demônios.

Precisaríamos, então, partir do pressuposto de que essas façanhas impossíveis e ignorantes foram inventadas pelos seus discípulos, que buscavam divinizar seu líder.

Naqueles dias de ignorância essas falsidades serviam para tornar Cristo famoso, mas agora lançam descrédito contra os autores dos evangelhos.

Será que hoje em dia podemos acreditar que água foi transformada em vinho? João relata esse milagre pueril, e diz que os outros discípulos também estavam presentes, contudo Mateus, Marcos e Lucas não dizem qualquer coisa a respeito.

Peguem o milagre do homem curado pelo tanque de Betesda. João diz que um anjo agitou a água do tanque de Betesda, e que o primeiro a entrar nele após o movimento da água seria curado de qualquer enfermidade. (cf. João 5:4)

Será que hoje em dia alguém ainda acredita que um anjo foi até o tanque e agitou a água? Alguém acredita que o pobre coitado que entrou nela primeiro foi curado? O autor do Evangelho de João acreditava e afirmava essas absurdidades.

Se ele estava enganado quanto a isto, talvez também estivesse quanto a todos os outros milagres que documentou.

João é o único que fala sobre o tanque de Betesda. Provavelmente os outros discípulos não acreditavam na história.

Como podemos dar crédito a esses falsos milagres?

Na época em que os discípulos viveram – e muitos séculos após – o mundo era abarrotado de explicações sobrenaturais. Quase tudo que acontecia era considerado milagroso. Deus era o governador imediato do mundo inteiro. Se as pessoas fossem boas, Deus enviava tempos de plantio e colheita; mas se fossem más, enviava dilúvios, granizo, geadas e fome. Se acontecia algo muito bom, o fato era exagerado até que se transformasse num milagre.

As pessoas não tinham qualquer noção, qualquer conhecimento sobre a ordem dos eventos – sobre a inquebrável cadeia de causas e efeitos.

Milagres são um símbolo da fraude. Nenhum milagre jamais aconteceu. Nenhum homem inteligente e honesto jamais fingiu realizar milagres, e nunca o fará.

Se Cristo tivesse realizado os milagres atribuídos a ele; se tivesse curado os paralíticos e os loucos; se tivesse concedido a audição aos surdos e a visão aos cegos; se tivesse curado leprosos com uma simples palavra, se com um toque tivesse dado vida e força a um membro atrofiado; se tivesse dado pulso e movimento, calor e consciência ao frio e inerte barro; se tivesse conquistado a morte, escapando das pálidas garras da sepultura – então nenhuma palavra seria pronunciada, nenhuma mão seria levantada, salvo em seu louvor e honra. Em sua presença todas cabeças estariam descobertas e todos joelhos contra o chão.

Não é estranho que durante o julgamento de Cristo não se tenha encontrado qualquer indivíduo que testemunhasse a seu favor?

Nenhum homem deu um passo à frente e disse: “Eu era leproso e este homem me curou com um toque”.

Nenhuma mulher disse: “Eu sou a viúva de Naim e este é meu filho, o qual foi ressuscitado por este homem”.

Nenhum homem disse: “Eu era cego e este homem me deu visão”.

Tudo era silêncio.


VIII
A filosofia de Cristo

Milhões afirmam que a filosofia de Cristo é perfeita – que ele foi o mais sábio que já pregou.

Vejamos: “não resistais ao homem mau; mas a qualquer que te bater na face direita, oferece-lhe também a outra”. (cf. Mateus 5:39)

Há alguma filosofia, alguma sabedoria nisso? Cristo retira da bondade, da virtude, da verdade o direito à autodefesa. O vício toma conta do mundo e os bons tornam-se vítimas dos infames.

Nenhum homem tem o direito de proteger-se, de proteger sua propriedade, sua família ou seus filhos. Governar torna-se impossível e o mundo está à mercê dos criminosos. Há algo mais absurdo que isso?

“Amai a vossos inimigos”. (cf. Lucas 6:27)

Isso é possível? Será que algum ser humano já amou seus inimigos? Será que Cristo os amava quando os denunciou como sepulcros caiados, hipócritas e víboras? (cf. Mateus: 23:27)

Não somos capazes de amar aqueles que nos odeiam. Ódio no coração dos outros não faz florescer amor no nosso. Não resistir ao mal é absurdo; amar inimigos é impossível.

“Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã”. (cf. Mateus 6:34)

A idéia é a de que Deus tomaria conta de nós assim como tomou das aves e dos lírios. Há o menor sentido nesta crença?

Deus toma conta de alguém?

Será que podemos viver sem nos preocuparmos com o amanhã? Arar, semear, cultivar, colher: isso é preocupar-se com o amanhã. Nós planejamos e trabalhamos para o futuro, para nossos filhos, para as gerações vindouras. Sem premeditação não poderia haver progresso nem civilização. O mundo retornaria às cavernas e à selvageria.

“se a tua mão te escandaliza, corta-a (...) se o teu olho te escandaliza, lança-o fora”. (cf. Marcos 9:43 e 47)

Por que? Porque é melhor “entrar no reino de Deus com um só olho, do que, tendo dois olhos, ser lançado no inferno”.

Há alguma sabedoria em arrancar olhos ou decepar mãos? Será possível extrair o menor grão de bom senso desses dizeres extravagantes?

“de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei”. (cf. Mateus 5:34-35)

Aqui encontramos os conhecimentos de Cristo sobre astronomia e geologia. O céu é o trono de Deus, o monarca; a Terra é seu escabelo. Um escabelo que está numa rotação de mil milhas por hora e que viaja pelo espaço a mais de mil milhas por minuto.

Onde Cristo pensou que o céu estava? Por que Jerusalém é uma cidade sagrada? Será porque seus habitantes eram ignorantes, rústicos e supersticiosos?

“...ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa” (cf. Mateus 5:40)
Há alguma filosofia, algum bom senso neste mandamento? Isso é tão lógico quanto dizer: “Se um homem te processar e ganhar cem mil, dê a ele duzentos mil”.

Só um maluco seguiria esse conselho.

“Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra”. (cf. Mateus 10:34-35)

Se isso é verdade, quão melhor não seria se ele nunca tivesse existido.

Como é possível que o mesmo indivíduo que disse “não resistais ao homem mau” tenha vindo trazer a espada? Como é possível que o mesmo indivíduo que disse “Amai a vossos inimigos” tenha vindo para destruir a paz do mundo?

E colocar pai contra filho e mãe contra filha – ó, que missão gloriosa!

De fato ele trouxe uma espada, a qual por milhares de anos permaneceu embebida em sangue inocente. Em milhões de corações ele semeou o ódio e a vingança. Dividiu nações e famílias, obscureceu a luz da razão e petrificou os corações dos homens.

“E todo o que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras, por amor do meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna”. (cf. Mateus 19:29)

De acordo com o autor de Mateus, Cristo, o compassivo, o misericordioso, pronunciou essas terríveis palavras. Será possível que Cristo ofereceu a felicidade eterna como uma recompensa a todos que abandonassem seus pais, suas mães, suas esposas e seus filhos? Seremos bem-aventurados nos céus se abandonarmos aqueles que amamos? Precisa-se destruir um lar aqui para que se construa uma mansão lá?

Contudo, diz-se que Cristo é um exemplo para o mundo. Ele abandonou seus pai e sua mãe? Ele disse à sua mãe: “Mulher, que tenho eu contigo?”. (cf. João 2:4)

Os fariseus disseram a Cristo: “É lícito pagar tributo a César, ou não?”. (cf. Mateus 22)

Cristo disse: “Mostrai-me a moeda do tributo”.

“E eles lhe apresentaram um denário”.

Perguntou-lhes Cristo: “De quem é esta imagem e inscrição?”.

Responderam: “De César”.

E Cristo disse: “Dai, pois, a César o que é de César”.

Cristo pensou que o dinheiro pertencia a César porque sua imagem e sobrescrição estavam estampadas nele? O denário pertence a César ou ao homem que trabalhou por ele? César tinha o direto de requisitá-lo apenas porque estava adornado com sua imagem?

Essa conversa faz parecer que Cristo realmente compreendia a verdadeira natureza e utilidade do dinheiro?

Será que agora podemos dizer que Cristo foi o maior dos filósofos?


IX
Cristo é o nosso exemplo?

Ele nunca pronunciou uma palavra em favor da educação. Nunca sequer mencionou a existência de qualquer ciência. Nunca disse algo em favor da indústria, da economia, de qualquer esforço que visasse melhorar as condições do mundo. Era inimigo dos bem-sucedidos, dos ricos. O homem rico foi enviado ao inferno não porque era mau, mas porque era rico. Lázaro foi enviado ao céu não porque era bom, mas porque era pobre. (cf. Lucas 16)

Cristo não se importava com pintura, escultura ou música – não dava importância à arte. Não disse nada sobre os deveres das nações uma para com as outras, dos reis para com seus súditos; nada sobre os direitos humanos; nada sobre a liberdade de pensamento e expressão. Não disse nada sobre a santidade do lar; nada em favor do casamento; nada em honra da maternidade.

Nunca se casou. Viveu perambulando de um lugar a outro acompanhado de uns poucos discípulos. Nenhum deles parece ter-se empenhado em qualquer trabalho produtivo; provavelmente viviam de esmolas.

Todas amarras afetivas eram tratadas com desprezo; este mundo era sacrificado em nome do próximo; todo labor era desencorajado. Deus nos ajudaria e protegeria.

Finalmente, nos seus últimos momentos de vida, Cristo, pensando estar errado, gritou: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. (cf. Salmos 22:1)

Descobrimos que o homem é o responsável por si próprio. Ele precisa construir uma casa; precisa cultivar a terra; precisa arar e semear; precisa inventar; precisa trabalhar com a mão e com a mente; precisa superar suas dificuldades e seus obstáculos; precisa conquistar e manipular as forças da natureza para com isso utilizá-las em prol do mundo.


X
Por que deveríamos colocar Cristo no ápice ou acima da raça humana?

Ele era mais bondoso, mais compreensivo, mais auto-sacrificante que Buda? Era mais sábio ou recebeu a morte com uma calma mais perfeita que Sócrates? Era mais paciente, mais caridoso que Epíteto? Era um filósofo mais grandioso, mais profundo que Epicuro? Em que aspecto era superior a Zoroastro? Era mais suave que Lao tsé? Mais universal que Confúcio? Suas idéias a respeito dos direitos e deveres humanos eram superiores às de Zenão? Expressou maiores verdades que Cícero? Seu intelecto era mais sutil que o de Spinoza? Seu cérebro era comparável ao de Kepler ou Newton? Foi superior em sua morte, foi um mártir mais sublime que Bruno? Sua inteligência, sua força e beleza de expressão, sua amplitude e alcance de pensamento, sua riqueza em ilustração, sua aptidão no comparar, seu conhecimento da mente e coração humanos – de todas paixões, esperanças e medos – eram páreo para Shakespeare?

Se Cristo era de fato Deus, então conhecia todo o futuro. Ante ele abria-se todo o panorama do porvir. Ou seja, sabia perfeitamente como suas palavras seriam interpretadas. Sabia quais crimes, quais horrores, quais infâmias seriam cometidas em seu nome. Sabia que as chamas da perseguição abraçariam incontáveis mártires. Sabia que milhares e milhares de homens e mulheres corajosos definhariam em calabouços sombrios, cheios de dor. Sabia que a Igreja inventaria instrumentos de tortura; que seus representantes utilizariam chicotes, troncos(4), correntes e ecúleos(5). Viu no horizonte do futuro o brilho das chamas dos autos-de-fé(6). Sabia que nasceriam doutrinas de cada texto como fungos deletérios. Viu seitas ignorantes travando guerras umas contra as outras. Viu milhares de homens, sob o comando de padres, construindo prisões para seus semelhantes. Viu o sangue mais nobre e bravo escorrer em milhares de patíbulos(7). Viu os fiéis de sua palavra usando instrumentos de tortura. Ouviu os gemidos, viu as faces empalidecerem em agonia. Ouviu os gritos e gemidos, viu correrem as lágrimas das multidões martirizadas. Sabia que espadas escreveriam comentários sobre suas palavras – para serem lidos à luz de troncos(4). Sabia que a Inquisição nasceria de ensinamentos atribuídos a ele.
Viu as interpolações e falsidades que seriam criadas pela hipocrisia. Viu todas as guerras futuras, e sabia que acima desses campos de morticínio, desses calabouços, dessas torturas, dessas cremações, dessas execuções, estaria hasteada uma bandeira com o símbolo da cruz gotejando sangue.

Sabia que a hipocrisia seria adornada e coroada – que a crueldade e a credulidade governariam o mundo; sabia que a liberdade seria varrida da Terra; sabia que papas e reis usariam seu nome para escravizar os corpos e a alma dos homens; sabia que os descobridores, pensadores e inventores seriam perseguidos e aniquilados; sabia que sua Igreja despojaria o mundo da sagrada luz da razão.

Viu seus discípulos vazando os olhos dos homens, os esfolando vivos, decepando suas línguas, procurando descobrir todos os nervos responsáveis pela dor.

Sabia que em seu nome seus seguidores usariam carne humana como moeda; sabia que, por ouro, berços seriam roubados e seios maternos ficariam sem ter a quem alimentar.

Contudo, morreu com os lábios em silêncio.

Por que não falou nada? Por que não disse isto aos seus discípulos – e através deles ao mundo –: “Tu não queimarás, não prenderás nem torturarás em meu nome. Tu não perseguirás teu próximo”.

Por que não disse claramente: “Eu sou o Filho de Deus” ou “Eu sou Deus”? Por que não explicou a Trindade? Por que não disse que tipo de batismo lhe agradava? Por que não escreveu uma doutrina? Por que não partiu as correntes dos escravos? Por que não disse se o Velho Testamento era ou não inspirado por Deus? Por que não escreveu o Novo Testamento ele próprio? Por que deixou suas palavras ao sabor da ignorância, da hipocrisia e do acaso? Por que não disse algo positivo, definitivo e satisfatório sobre o outro mundo? Por que não transformou a lacrimosa esperança num céu em uma venturosa certeza sobre uma outra vida? Por que não nos disse algo sobre os direitos humanos, sobre a liberdade no agir e no pensar?

Por que se entregou a uma morte infame, deixando no mundo a miséria e a dúvida?

Eu vou dizer o porquê: Jesus era um homem, ele não sabia.


XI
Inspiração

Somente por volta século III afirmou-se ou creu-se que os livros constituintes do Novo Testamento eram inspirados.

Lembremos que havia um grande número de livros, Evangelhos, Epístolas e Atos, e que homens “não inspirados” selecionaram quais deles eram “inspirados”.

Entre os “Pais” havia grandes divergências de opinião quanto aos livros realmente inspirados; muita discussão e muito ódio. Vários dos livros atualmente considerados espúrios eram julgados divinos por muitos dos “Pais”; alguns dos que atualmente são considerados inspirados eram tidos como espúrios. Muitos dos primeiros cristãos e alguns dos “Pais” repudiaram o Evangelho de João, a Epístola dos Hebreus, de Judas, de Tiago, de Pedro e a Revelação S. João. Por outro lado, muitos deles consideravam o Evangelho dos Hebreus, dos Egípcios, a Pregação de Pedro, o Pastor de Hermas, a Epístola de Barnabé, a Revelação de Pedro, a Revelação de Paulo, a Epístola de Clemente, o Evangelho de Nicodemos, como autênticos livros inspirados.

Dentre esses livros, e muitos outros, os cristãos selecionaram os inspirados.

Os homens que fizeram a seleção eram ignorantes e supersticiosos. Acreditavam firmemente em milagres. Pensavam que doenças tinham sido curadas pelos aventais e lenços dos apóstolos, pelos ossos dos mortos. Acreditavam na fábula da Fênix e também que a hienas mudavam de sexo anualmente.

Os homens que, ao longo de muitos séculos, fizeram a seleção estavam inspirados? Aqueles homens – ignorantes, crédulos, estúpidos e maliciosos – eram tão bem qualificados para julgar a “inspiração” quanto os estudiosos de nosso tempo? O que nos prende à opinião deles? Não temos o direito de julgar nós mesmos?

Erasmo, um dos líderes da Reforma, declarou que a Epístola dos Hebreus não havia sido escrita por Paulo, negou a inspiração da Segunda e Terceira de João e também a da Revelação. Lutero tinha a mesma opinião. Declarou que Tiago era uma epístola sem valor e negou a inspiração da Revelação. Zwingli rejeitou o livro da Revelação e mesmo Calvino negou que Paulo era o autor de Hebreus.

A verdade é que os protestantes só entraram em acordo quanto à inspiração dos livros em 1647, na Assembléia de Westminster.

Para provar que um livro é inspirado é preciso provar a existência de Deus. Também é necessário provar que este Deus pensa, age, tem objetivos, finalidades e alvos. Fazê-lo é um pouco difícil.

É impossível conceber a idéia de um ser infinito. Não tendo a concepção de um ser infinito, é impossível dizer se todos fatos que conhecemos tendem a provar ou refutar a existência de tal ser.

Deus é uma suposição. Mas mesmo admitindo-se a existência de Deus, como poderíamos provar que ele inspirou os escritores dos livros da Bíblia?

Como um homem pode estabelecer a inspiração de outro? Como um homem inspirado pode provar que está inspirado? Como ele próprio sabe que está inspirado?

É impossível provar o fato de se estar inspirado. A única evidência que possuímos é a palavra de um homem.

O que é inspiração? Deus usa homens como instrumentos? Fez com que escrevessem seus pensamentos? Tomou posse de suas mentes e suprimiu suas vontades?

Esses escritores estavam apenas parcialmente controlados, daí seus equívocos, sua ignorância e seus preconceitos estarem misturados com a sabedoria de Deus?

Como podemos distinguir os erros do homem dos pensamentos de Deus? Podemos fazê-lo sem estarmos inspirados? Se os autores originais estavam inspirados, então os tradutores também deveriam estar, assim como os intérpretes da Bíblia.

Como é possível a um ser humano ter consciência de que está inspirado por um ser infinito? Mas de uma coisa podemos ter certeza: um livro inspirado certamente deve ser superior a quaisquer outros livros produzidos por homens não inspirados. Deve, acima de tudo, ser verdadeiro, repleto de sabedoria, prosperidade e beleza – deve ser perfeito.

Os ministros perguntam-se como posso ser pervertido o suficiente para atacar a Bíblia.

Bem, vou responder: este livro, a Bíblia, perseguiu – às vezes até a morte – os melhores e mais sábios dentre os homens. Este livro atravancou e paralisou o progresso da raça humana. Este livro envenenou as fontes do conhecimento e descaminhou as energias do homem.

Este livro é inimigo da liberdade – apóia a escravidão. Este livrou semeou o ódio em famílias e nações, alimentou as chamas da guerra e empobreceu o mundo. Este livro é o sustentáculo dos reis e tiranos – o escravizador de mulheres e crianças. Este livro corrompeu parlamentos e cortes. Este livro fez com que faculdades e universidades ensinassem erros e odiassem a ciência. Este livro encheu a cristandade de seitas odiosas, cruéis, ignorantes e autoritárias. Este livro ensinou o homem a matar seus semelhantes em nome de Deus. Este livro fundamentou a Inquisição, inventou instrumentos de tortura, construiu calabouços nos quais homens bondosos apodreciam, forjou as correntes que se enferrujaram envolvendo seus corpos e erigiu os patíbulos nos quais foram mortos. Este livro colocou os justos em troncos(4). Este livro despojou a razão da mente de milhões e encheu os asilos de malucos.

Este livro fez com que pais e mães derramassem o sangue de seus bebês. Este livro era o tablado sobre o qual as mães escravas ficavam durante os leilões que as separariam de suas crianças. Este livro rendeu muito aos vendedores de escravos e transformou carne humana em mercadoria. Este livro acendeu as chamas que consumiram as “bruxas” e “feiticeiras”. Este livro transformou a escuridão na morada de fantasmas e os corpos de homens e mulheres na morada de demônios. Este livro poluiu as almas dos homens com o infame dogma da danação eterna. Este livro transformou a credulidade na maior das virtudes e a investigação no maior dos crimes. Este livro encheu nações de eremitas, monges e freiras – de gente fanática e inútil. Este livro colocou os santos ignorantes e imundos acima dos filósofos e filantropos. Este livro ensinou o homem a desprezar as alegrias desta vida para poder ser feliz na outra – a desperdiçar este mundo em nome do próximo.

Ataco este livro porque é um inimigo da liberdade humana – a maior travanca no progresso da humanidade.

Senhores ministros, me permitam fazer-lhes uma pergunta: como vocês podem ser pervertidos o suficiente para defenderem este livro?


XII
A verdadeira Bíblia

Por milhares de anos o homem vem escrevendo a verdadeira Bíblia – está sendo escrita dia a dia, e nunca será terminada enquanto o homem tiver vida.

Todos os fatos que conhecemos – os eventos verdadeiramente ocorridos; todas as descobertas e invenções; todas as maravilhosas máquinas cujas engrenagens parecem ter vida própria; todos os poemas; todas as jóias do intelecto; todas as flores do coração; todas as canções de amor – as tristes e as alegres; os grandes dramas da imaginação; as admiráveis pinturas – verdadeiros milagres da forma e da cor, da luz e da sombra; as maravilhosas esculturas que parecem respirar; os segredos contados pelas rochas e pelas estrelas, pelo pó e pelas flores, pela chuva e pela neve, pelo frio e pelo fogo, pelas correntes de ar e pela areia do deserto, pela altura das montanhas e pelas ondas do mar.

Toda a sabedoria que prolonga e enobrece a vida, que previne e cura doenças, que conquista a dor; todas as leis perfeitas e justas que guiam e modelam nossas vidas; todos os pensamentos que alimentam as chamas do amor; a música que transfigura, arrebata e enfeitiça; as vitórias do coração e da mente; os milagres que mãos construíram; as sábias e hábeis mãos daqueles que trabalharam por suas esposas e filhos; as histórias sobre feitos nobres, sobre homens bravos e produtivos, sobre o amor de esposas leais, sobre o amor incondicional das mães, sobre os conflitos em nome da justiça, sobre os sacrifícios em nome da verdade, sobre tudo de melhor que os homens e mulheres do mundo disseram, pensaram e fizeram através dos anos.

Estes tesouros do coração e do intelecto são as verdadeiras Sagradas Escrituras da raça humana.

Notas
As partes retiradas da Bíblia estão em itálico.
A versão original de Sobre a Bíblia Sagrada (
About the Holy Bible) não traz o capítulo ou o versículo em que se encontram as passagens aludidas ou transcritas, por isso, quando entendido necessário, a fim de agilizar as consultas, foram adicionados, entre parênteses, links que conduzem diretamente ao capítulo em questão.
1 – No original aparece capítulo 17, mas na realidade o verso citado encontra-se no capítulo 18.
2 – O original diz quatro olhos, mas em
Zacarias 3:9 é dito que este número é sete.
3 – Joseph Smith, nascido em 1805, foi um “profeta” que alegou ter sido visitado aos catorze anos de idade por Deus e Jesus Cristo, os quais incumbiram-no de restaurar a “verdadeira Igreja”.
4 – Antigo instrumento de tortura, que consistia num cepo com olhais, onde se metia o pé ou o pescoço do paciente. (Dic. Aurélio)
5 – Cavalo de madeira, no qual se torturavam os acusados ou condenados. (Dic. Aurélio)
6 – Cerimônia em que se proclamavam e executavam as sentenças do Tribunal da Inquisição, e na qual os penitenciados ou abjuravam os seus erros, ou eram condenados ao suplício da fogueira. (Dic. Aurélio)
7 – Estrado ou lugar onde os condenados sofrem a pena capital (forca, guilhotina, decapitação). (Dic. Aurélio)