Eduardo O C Chaves
O Festival das Besteiras que Assolam o País está de volta. Infelizmente. Havia ousado imaginar que os ventos da modernidade teriam afastado de nós para sempre o besteirol, mas ei-lo de volta no episódio do chute na santa. Os principais agentes: a Rede Globo, sempre afoita para obter uns pontinhos a mais no IBOPE; a hierarquia católica, cuja fala ficou macia, mas o ódio à concorrência continua como era na época da Inquisição; e Delegados, Procuradores e outros representantes da ordem, sequiosos por 15 segundos de notoriedade. As outras redes de televisão e os outros meios de comunicação, que poderiam ter dado uma lição de moral à Globo no episódio, adotando uma postura profissional e não sensacionalista, sucumbiram a tentação de brincar de "follow the leader". O bispo da Igreja Universal do Reino de Deus chutou a santa na Record. Mas quem vê a Record? Quem promoveu o incidente a manchete nacional, durante vários dias, em todos os seus noticiários, foi a Globo (envolvida há meses numa briguinha sem graça com a Record). A Igreja Católica adorou a oportunidade de se promover gratuitamente, em não sei quantos desagravos, que continuam até hoje. As autoridades policiais e judiciárias viram no incidente sua grande chance de fama, ainda que efêmera, e uma boa ocasião para demonstrar sua devoção (que, na realidade, nem mesmo o advogado do bispo perdeu).
Fala-se, a torto e a direito, que o bispo teria cometido um crime. O que não fica claro é qual teria sido o seu crime. Entre as alegações que ouvi estão:
Que o crime seria de atentado à liberdade religiosa
Que o crime seria de preconceito religioso
Que o crime seria de profanação de símbolo religioso
Que o crime seria de preconceito religioso
Que o crime seria de profanação de símbolo religioso
Destas três, a alegação mais plausível é a terceira. O resto é besteirol puro. Embora não seja jurista, vou me conceder o direito de comentar brevemente as três alegações. Faço isso porque os juristas parecem não querer colocar a mão nesse vespeiro.
A liberdade religiosa (liberdade de crença e de culto) é, de fato, garantida na Constituição (Art. 5º, Inc. VI). O que é difícil de sustentar é que o bispo tenha atentado contra ela. O que a Constituição garante é o direito de cada um ter e seguir a religião (crença e culto) que quiser – e até de não ter ou seguir religião alguma. O ato do bispo, conquanto se possa admitir de mau gosto, fútil, idiota, ou mesmo revoltante, não viola a liberdade, religiosa ou qualquer outra, de ninguém. Ninguém foi impedido, ou privado do direito, de crer ou praticar seja lá o que for, em virtude da ação do bispo. Não houve vítima no caso. Assim, dificilmente se pode arguir que tenha havido violação do direito à liberdade religiosa.
Quanto ao suposto crime de preconceito religioso, deve-se reconhecer que a Constituição e as leis do país proíbem "a prática" de algumas formas de preconceito – o racial, por exemplo (Vide a Constituição, Art. 5º, Inc. XLII: "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível"). Mesmo deixando de lado a distinção entre ter um preconceito e praticá-lo, não me consta que as leis proíbam outros preconceitos, como, por exemplo, o esportivo, o político, e, quero crer, o religioso. Eu, por exemplo, como sãopaulino de nascença, posso achar, a priori, os corinthianos uns topeiras e os palmeirenses uns babacas – sem com isso cometer crime. Eu, por exemplo, como liberal (da velha estirpe, não "neo"), posso achar os comunistas uns débeis mentais, os petistas burros e os democratas sociais mal intencionados – sem com isso cometer crime. (Nosso próprio Presidente "neo-social", um dia desses, num laivo de lucidez e rara franqueza, chamou a esquerda de burra.) E eu, como ateu convicto, posso achar todos os líderes religiosos, do Papa ao Bispo Macedo, passando pelo Rabino Sobol, os piores manipuladores da mente humana que o mundo já conheceu, muitos deles nem mesmo bem intencionados – sem com isso cometer crime. Qual o crime que teria cometido o bispo da Igreja Universal do Reino de Deus ao achar que os católicos romanos são uns babacas (que outro termo é tão adequado?) por ficar reverenciando bonequinhos de barro vendidos aos ignorantes por preços ultrajantes? Se ele achasse o máximo ficar reverenciando a santa, provavelmente seria bispo católico, teria fala e modos efeminados, e talvez até mesmo usasse saia. (E, se tivesse feito uma besteira, teria sido mandado para a linda Itália, não para a escaldante África).
Quanto ao alegado crime de profanação de símbolo religioso, os acusadores do bispo parecem ter um pouco mais de base jurídica. O Art. 208 do Código Penal afirma ser crime "contra o sentimento religioso", "escarnecer de alguém, publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso". Contudo, minha edição comentada do Código Penal (editada por Alberto Silva Franco et al, 5ª ed., Editora Revista dos Tribunais, 1995), ao discutir a terceira hipótese ("vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso"), cita o esclarecimento de Damásio Evangelista de Jesus (Direito Penal, vol. 3º/65, 7ª ed., Saraiva, 1991): "É preciso . . . que tais objetos já estejam consagrados, ou seja, já tenham sido reconhecidos como sagrados pela religião ou já tenham sido utilizados nos atos religiosos". Isso significa – continua o jurista – que (por exemplo) "os paramentos expostos numa loja, ainda não usados, não se constituem em objeto material do crime". Pelo que sei, o bispo comprou, ele mesmo, a santa que ele chutou no ar (conforme ele disse, se bem me lembro, por quinhentos reais): ela, portanto, provavelmente, não estava consagrada. Se isso é verdade, também aqui não teria havido crime. (Já que estamos falando nisso, a minisérie Decadência, da Globo, não teria "escarnecido" publicamente do Bispo Macedo?)
O que acho mais sério é que o esforço feito pela Globo e pela Igreja Católica, com alguma assistência de membros do Congresso e até da Presidência da República (que se deixou envolver numa questiúncula), no sentido de caracterizar o incidente como uma das coisas mais importantes no país no momento, é que esse esforço camufla problema mais sério, relacionado a essa mesma área, qual seja: a Igreja Católica, apesar do que diz a Constituição acerca da laicidade do Estado brasileiro (Art. 19, Inc.I), ainda se acha dona do Estado, e alguns representantes do Estado têm enorme satisfação em dela se fazerem de lacaios. A ocasião que levou o bispo a chutar a santa foi o feriado nacional de 12 de Outubro, Dia de Nossa Senhora Aparecida. Ora, num Estado leigo, por que seria o Dia de Nossa Senhora Aparecida, ou de qualquer outra santa, feriado nacional? Por que seria Sexta-feira da Paixão feriado nacional? Corpus Christi? Não faz sentido. Os dias santos dos judeus não são feriados nacionais, nem os dos maometanos, nem os dos shintoístas, nem os de nenhuma outra religião. Essa parcialidade revolta os membros de outras religiões e revolta aqueles que, como eu, não têm religião alguma. Isso precisa acabar. Ouvi dizer, num programa de televisão, que em Aparecida do Norte a municipalidade tem uma lei que proíbe religiões não-católicas de construir templos a não sei quantos quilômetros da basílica. Se isso é verdade, é um absurdo: a municipalidade, leiga, está favorecendo uma religião em detrimento das outras, em clara violação do texto constitucional (Art. 19, Inc.I). Isso precisa acabar. É preciso, também, remover o "sob a proteção de Deus" do Preâmbulo da Constituição. A referência é imprópria, à vista da laicidade do Estado, e atentatória aos princípios dos cidadãos que não acreditam em Deus.
A Igreja Católica é uma das instituições religiosas mais nefastas que o mundo já viu (disputando o primeiro lugar com o Islamismo). Não me refiro nem à carnificina das Cruzadas nem às fogueiras da Inquisição. Refiro-me, por exemplo, à sua postura em relação ao controle da natalidade, que só não causa mais mal porque católicos minimamente instruídos totalmente ignoram o ensino e a orientação da Igreja. Nesse contexto, um médico, um dia desses, no programa da Sílvia Poppovic, se referiu à Igreja Católica como o maior câncer da sociedade brasileira. Está certo ele. Por que a Globo não ataca esse câncer, em vez de buscar publicidade em cima de verrugas, como a Igreja Universal do Reino de Deus e, há alguns anos, a Igreja da Unificação? Só porque o Roberto Marinho é carola?
© Copyright by Eduardo Chaves
Nenhum comentário:
Postar um comentário