quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Investigação Sobre as Causas da Pobreza da Nação



Por Alceu Garcia

"People of the same trade seldom meet together, even for merriment and diversion, but the conversation ends in a conspiracy against the public, or in some contrivances to raise prices."

Adam Smith, The Wealth of Nations

Dos incontáveis disparates perpetrados por Karl Marx a idéia de interesse de classe, ou seja, que os indivíduos de um determinado grupo sócio-econômico agem, ou deveriam agir, em conjunto, é um dos mais absurdos. Porém, de tanto ser martelado pela intelectuária, essa tolice ganhou foro de senso comum e até os próprios "burgueses" acreditam nela. Na verdade, tanto "burgueses" como "proletários", assim como outros grupos, ou supostos grupos, têm interesses conflitantes no seio mesmo de sua "classe", e estão sempre urdindo maquinações não só contra o público em geral, mas também uns contra os outros.

Para ilustrar essas tramas nada melhor do que mencionar fatos do nosso cotidiano e invocar o testemunho de Adam Smith, pensador muito superior a Marx como economista, filósofo, sociólogo, antropólogo, psicólogo, tudo, enfim, mas que infelizmente ninguém mais lê. Escrevendo na época do mercantilismo, Smith notou claramente como corporações dos mais variados ofícios restringiam de todas as formas o ingresso de novos praticantes de modo a limitar a oferta e manter preços mais altos do que seria o caso se a concorrência fosse livre. "O pretexto de que as corporações são necessárias para a melhor administração do ofício não tem o menor fundamento", dizia ele. "A disciplina real e eficaz que é exercida sobre o artífice não é aquela da sua corporação, mas a dos seus clientes. É o temor de perder a clientela que refreia as fraudes e corrige a negligência. As corporações exclusivas necessariamente enfraquecem o poder dessa disciplina."

No Brasil as versões modernas das guildas do tempo de Smith estão por toda parte. O leitor provavelmente integra uma delas. Eu mesmo sou membro de uma guilda, a Ordem dos Advogados do Brasil. Somente quem preencher os requisitos exigidos pela corporação e pagar a respectiva taxa anual pode exercer o ofício da advocacia. O mesmo se dá com quase todas as profissões, e ai de quem ousar desobedecer as precrições corporativas. É preso por exercício ilegal de profissão. Até a astrologia está prestes a receber dos nossos legisladores o privilégio de formar a sua própria guilda. O nosso país é o paraíso das corporações, pois a cultura mercantilista transplantada da Península Ibérica ganhou estatuto oficial na época do Estado Novo de Vargas e vem sendo "recepcionada" pelas sucessivas constituições promulgadas e outorgadas desde então. O excelente livro de Josino Moraes sobre a infausta justiça do trabalho examina à fundo essa aberração.

É claro que não faltam justificativas grandiloquentes para esse sistema. Diz-se que os organismos profissionais velam pela boa qualidade do serviço prestado ao público. Adam Smith nunca se deixou enganar pelo "clamor e sofística dos mercadores e artesãos que facilmente persuadem o público de que o interesse privado de uma parte, e de uma parte subordinada da sociedade, é o interesse geral do todo." Smith enuncia o que modernamente se conhece como "ignorância racional", a tendência da sociedade de se deixar ludibriar por grupos de interesse, cujos ganhos concentrados correspondem a perdas diluídas por todo o corpo social, desencorajando a oposição.

Tendo em mente a lógica corporativa, não constitui surpresa o espetáculo deprimente da mais importante federação de industriais do país bajulando os ferrabrazes socialistas que pleiteiam a presidência da república. Eis que todos eles falam em "política industrial" e "substituição de importações", ou seja, em proibição da concorrência de similares estrangeiros mais baratos e em transferências de dinheiro dos contribuintes para os empresários. Nada parece agradar mais a classe industrial do que tosquiar o resto dos brasileiros, como consumidores e contribuintes. É um erro acreditar que a economia de mercado possa ser defendida pelos empresários, pela "burguesia". Não é por nada que Keynes é muito mais popular na Fiesp do que Mises. Como qualquer grupo humano organizado, os empresários temem e odeiam acima de tudo a concorrência.

Não há melhor negócio no Brasil de hoje do que ser banqueiro. Trata-se de um ramo comercial rigidamente controlado e regulado pelo Estado, que decide quem pode abrir um banco e como operá-lo. Como o Estado atualmente precisa recorrer a um pesado endividamento para administrar suas periclitantes finanças, os bancos se tornaram praticamente agentes operacionais do governo, intermediando a compra e venda de títulos públicos que absorve quase toda a poupança nacional, um negócio sujeito a riscos relativamente baixos (salvo a hipótese sempre presente do calote estatal e do confisco, é claro). Não é de espantar, pois, que os banqueiros estejam apoiando calorosamente o candidato Serra, malgrado tanto ele quanto seu mentor FHC sejam socialistas de crachá. Para Marx, os banqueiros deveriam ser os mais ardentes defensores do capitalismo. Adam Smith, porém, sabia que para as corporações princípios doutrinários nada significam quando em contraste com a possibilidade de lucros máximos e riscos mínimos. Mesmo que o socialismo possa estar espreitando logo à frente. Se Lula lhes oferecer garantias suficientes que dará continuidade à política financeira de FHC, os banqueiros o apoiarão alegremente.

Os sindicatos de assalariados não se distinguem da lógica geral: são associações restritivas, cujo fim é obstruir a concorrência por todos os meios possíveis em benefício dos que já integram a guilda. Durante muito tempo a mitologia socialista nutriu uma imagem altamente idealizada dos sindicatos, valentes assembléias de proletários explorados e perseguidos por seus patrões e por governos cúmplices. A realidade das máfias sindicais se encarregou de esmaecer esse retrato idílico. Como demonstrou William Hutt no seu livro The Theory of Collective Bargaining, os sindicatos ingleses de trabalhadores industriais desde o início tiveram por meta a exclusão de trabalhadores mais pobres do mercado, sobretudo irlandeses. Posteriormente, a parceria entre as burocracias sindicais e seus pares estatais paralisou e quase destruiu a economia britânica. A ojeriza anti-imigração nos países ricos não tem base alguma em interesses capitalistas, visto que o aumento de oferta de trabalho necessariamente deprimiria os salários. São os sindicatos de assalariados os maiores opositores à imigração de mão-de-obra concorrente. E também são eles os piores inimigos do deslocamento do capital para os países pobres, posto que isso também implica em diminuição de salários. Daí em parte vem a propaganda contra as multinacionais e os protestos contra o "dumping social", isto é, os salários mais baixos vigentes nos países pobres em razão da baixa acumulação de capital.

Ainda mais nocivas do que as guildas do setor privado são as corporações de burocratas estatais, vez que sua remuneração provém diretamente do confisco do dinheiro de quem ao menos produz e trabalha sob alguma disciplina de mercado, mesmo que gravemente entravada. No Brasil nada nem ninguém consegue se opor às exigências desses poderosos grupos, cujos privilégios cada vez mais exorbitantes estão a ponto de deflagrar uma crise sem precedentes, como a que aflige a Argentina (e pelas mesmas razões). O PT e seu braço sindical praticamente limitado a funcionários públicos, a CUT, representam esses interesses nefastos, sempre embrulhados nos pretextos sofísticos denunciados por Smith, em geral sob o rótulo sedutor de "serviços públicos de qualidade".

Por outro lado, é oportuno examinar uma crítica relevante do pensamento conservador ao liberalismo, presente, por exemplo, na obra do grande sociólogo americano Robert Nisbet. Para Nisbet, o individualismo liberal gerava contraditoriamente a destruição das instituições intermediárias entre o Estado e o indivíduo, entre as quais as corporações, e que, ao fim e ao cabo, resultava em uma ordem social ainda pior do que a mercantilista em virtude do agigantamento do poder estatal na esteira do vácuo deixado pelo desaparecimento das organizações comunitárias. Eu acredito que esse argumento repousa sobre uma falsa premissa, a de que as instituições intermediárias são incompatíveis com o liberalismo. Ao contrário, tudo o que os liberais pedem é que essas associações voluntárias sejam privadas de força normativa injusta, nada mais. O fato é que vivemos atualmente no pior dos mundos, marcado pela proliferação de guildas em íntima aliança com o crescente poder estatal, uma espécie de supermercantilismo em perpétua, ainda que lenta, marcha para um super-socialismo do tipo soviético. Somente esse sistema poderá absorver todas as corporações numa só, superando os conflitos de interesse entre elas. Mas o socialismo, já sabemos, é uma ordem social não apenas injusta como inviável.

Adam Smith reconhecia o horror anti-competitivo das corporações como um vício humano genérico. Consequentemente, a tarefa primeira de um ordenamento social justo seria a de prevenir as conspirações dessas associações espúrias evitando encorajar a sua criação e jamais atribuir-lhes poderes normativos. No Brasil, contudo, a legislação consagra as corporações em toda a linha. É o privilégio do interesse do produtor sobre o do consumidor; é a violação básica do direito de propriedade e liberdade individual. O resultado é a injustiça sistematizada que nos assola. A lei, escreveu Frédéric Bastiat para uma França em tudo semelhante ao Brasil dos nossos dias, só é legítima quando organiza coletivamente a legítima defesa dos direitos individuais à vida, à liberdade e à propriedade contra assassinos, bandidos e fraudadores particulares. Quando porém a legislação acolhe em seu bojo interesses espúrios de grupos privados em detrimento do público em geral ela se torna ilegítima e mera expressão do roubo organizado. Uma sociedade disciplinada por leis assim injustas mais cedo ou mais tarde sucumbirá ao caos e à dissolução.

A missão dos intelectuais seria a de transcender os choques de interesses entre as guildas e tentar persuadir o público de que o interesse de todos a longo prazo é melhor servido quando os lobbies são contidos e despidos de suas vantagens particulares. Adam Smith tentou justamente isso e, o que o teria surpreendido, pois ele era muito pessimista nesse aspecto, após duas gerações suas idéias preponderaram em grande parte, a Inglaterra livrou-se das corporações e adotou a livre concorrência e o livre comércio por algum tempo. Não por coincidência, os ingleses prosperaram como nunca nesse período. Desafortunadamente, o modelo marxista de intelectual acabou suplantando seu antecessor smithiano, e a intelectualidade fez-se a mais egoísta e cruel de todas as corporações, a intelligentsia socialista, grupo incoercivelmente dedicado a implantar o socialismo e constituir-se em classe dominante absoluta e incontrastável, a nomenklatura. Enquanto essa guilda letrada for hegemônica não há como ser otimista em relação ao futuro.

Alceu Garcia (pseudônimo de Pedro Mayall Guilayn) -Rio de Janeiro

Agosto/2002

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