quarta-feira, 9 de setembro de 2009

O país das Corporações


A eleição que importa é indireta. O comparecimento às urnas, obrigatório. O princípio do "um homem, um voto" é solenemente ignorado. O órgão central reúne poderes quase absolutos. As contribuições pecuniárias são compulsórias.

Não, não estou falando do Partido Comunista da Mongólia --aliás, nem estou muito certo de que ainda exista um--, mas da veneranda OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), conselho profissional que guarda notáveis semelhanças com aquele que o governo pretende criar para jornalistas, objeto de minha coluna da semana passada. Não queria ter chegado até esse ponto, mas fui provocado. Muitas das mensagens que recebi por conta do texto insistiam em que nada havia de errado com a regulamentação profissional por meio de associações. É o ponto que pretendo discutir na crônica de hoje.

Longe de mim negar a importância que a OAB desempenhou e segue desempenhando no aprimoramento das instituições democráticas e na defesa dos direitos humanos, mas não creio que isso seja razão para fecharmos os olhos para o caráter arcaico e excludente da organização, tributária das guildas, as corporações de ofício medievais. Como suas congêneres mais antigas, a OAB estabelece que quem não pertence à Ordem não pode exercer a profissão e é a Ordem que escolhe aqueles que a ela podem pertencer. A coisa é tão medieva que não faltam nem mesmo normas relativas aos trajes. De acordo com o Estatuto da Advocacia e da OAB, cabe ao Conselho Seccional "determinar, com exclusividade, critérios para o traje dos advogados" (art. 58, XI).

É evidente que associações profissionais têm a legítima tendência de procurar fazer valer os interesses de seus membros. Os problemas começam quando essas organizações se tornam maiores do que sindicatos --que é o que deveriam ser-- e passam a interferir diretamente em decisões do Estado e na vida de todos os cidadãos. É bem este o caso da OAB. Talvez até por seus méritos, a Ordem conquistou um poder que poucas outras categorias experimentaram: indica juízes para compor tribunais, é legitimada para uma série de ações judiciais e conseguiu transformar seu estatuto em lei federal, a 8.906/94.

Obteve até mesmo o direito de organizar um exame para determinar quais bacharéis em direito estão aptos a exercer a advocacia. Não nego que esse seja um serviço de utilidade pública, pois evita em parte que desqualificados atuem profissionalmente, levando pobres incautos a perder dinheiro, propriedades e até a liberdade. Precisamos, porém, convir que essa é uma situação anômala, que só ocorre por uma série de falhas anteriores. Se o Ministério da Educação não deixasse que empresários abrissem faculdades como se fossem padarias e zelasse adequadamente pela qualidade dos cursos em operação e se as escolas reprovassem os maus alunos como deveriam, o exame de ordem perderia sua razão de existir.

Voltando à OAB, ela infelizmente não foi capaz de superar seu corporativismo --a natureza humana nunca foi muito generosa mesmo. Ao conseguir que causas superiores a 20 salários mínimos sejam necessariamente acompanhadas por advogados, esvaziou um dos maiores avanços do Judiciário dos últimos anos, os Juizados Especiais Cíveis, também conhecidos como tribunais de pequenas causas, que podem arbitrar pleitos de até 40 salários. Trata-se, como é óbvio, de uma reserva de mercado que implica uma tutela indevida, pois impede que pessoas representem a si próprias em juízo, o que deveria ser um postulado elementar da cidadania.

Numa democracia que levasse a sério seus pressupostos, todos seriam livres para não recorrer a advogados, se assim desejassem e arcassem com as conseqüências de sua escolha. Resvalo agora no terreno da provocação: como já dizia Platão a respeito dos advogados da época, qualquer um tem o direito de não confiar em gente cuja preocupação primordial não seja o estabelecimento da Verdade e que adota ora uma ora outra opinião mediante paga.

A essa altura, o leitor deve estar julgando que tenho algo contra advogados. Asseguro que nada há de mais inverídico. Prezo muito a categoria, da qual fazem parte, além de vários bons amigos, meu pai e minha mãe. Parafraseando um sábio, sou amigo dos advogados, mas mais ainda da lógica e dos princípios.

Alguém poderia argumentar que o direito constitui um caso especial. Um conselho de jornalismo não precisaria necessariamente padecer dos mesmos defeitos. Pode ser. Por isso, sugiro que visitemos uma outra organização, o Conselho Federal de Medicina (CFM).

Na estrutura "democrática", o CFM é bem parecido com a OAB federal: eleições indiretas com voto obrigatório em listas fechadas. O sufrágio de um médico do Amapá deve valer, no plano nacional, pelo de milhares de médicos que atuam em São Paulo. Como no caso dos advogados, só pode clinicar e operar bacharel em medicina regularmente inscrito no Conselho Regional de Medicina (CRM) de seu Estado. Depois de 70 anos de exercício profissional --quando o profissional já passou, portanto, dos 90--, o CRM pode decidir isentar o médico das extorsivas anuidades.

Não são, porém, esses pequenos vícios autoritários que me incomodam no Conselho. Preocupa-me o fato de que, a exemplo dos advogados, os médicos conseguiram tornar em lei seus estatutos e o código de ética, situação em que a categoria está ditando normas a toda a sociedade. E o Código de Ética Médica brasileiro é, lamentavelmente, muito ruim. Trata-se de uma peça pré-kantiana, que muitas vezes passa por cima da autonomia do paciente, e ainda se baseia numa deontologia paternalista e despótica. O código faculta ao médico mentir sobre o estado de saúde do paciente (art. 59), se considerar que a notícia pode causar-lhe dano. Havendo "perigo de vida" (sic), sempre definido pelo médico, o profissional pode fazer o que bem desejar com o paciente (art. 46).

O leitor talvez considerará que esses são dispositivos concebidos para casos extremos, pouco usados no dia-a-dia. Infelizmente, não é bem assim. Deixar de informar um doente de seu diagnóstico ainda é prática comum. Nas UTIs e enfermarias, é freqüente profissionais amarrarem o paciente agitado ao leito, quando bastaria maior vigilância e quem sabe alguma sedação.

Alguém poderia argumentar que os CRMs e o CFM são importantes porque livram a sociedade de maus médicos. A minha resposta é: teoricamente. Como toda entidade de classe, os Conselhos tendem a ser extremamente tolerantes com os erros de seus colegas. Não consegui achar números, mas me surpreenderia se os tribunais internos condenassem proporcionalmente mais do que a Justiça. Em termos de tempo, podem ser ainda mais lentos do que o Judiciário, cuja velocidade já se tornou objeto de provérbios. Antes que me tomem por um inimigo dos médicos, devo dizer que não é o caso. Tanto admiro a categoria que sou casado com uma médica.

Poderia ainda traçar perfis pouco lisonjeiros de outros conselhos. Não o faço pois faltam-me o conhecimento e o espaço necessários. O que importa aqui é fugir às armadilhas. O fato de existirem OABs, CFMs e vários conselhos assemelhados não os torna necessariamente bons, democráticos, socialmente oportunos e, menos ainda, dignos de ser imitados. Numa democracia republicana, os limites do que lícito e do que não é devem ser definidos por lei elaborada no Congresso Nacional, sem delegações para associações profissionais, que, como é natural, darão vazão a anseios corporativos diversos do interesse público, quando não francamente contrários a eles.

Não estou, evidentemente, afirmando que advogados, médicos, engenheiros, farmacêuticos, taxistas e até covardes e charlatães devam ser privados da representação de classe. Essas categorias devem organizar-se em sindicatos verdadeiramente livres, isto é, sem as amarras da unicidade e do imposto sindicais, que apenas desvirtuam a representação.

Na verdade, OABs, CFMs et caterva como entidades que mantêm um relacionamento especial com o Estado são um legado daninho do corporativismo de inspiração fascista. Não é à toa que a primeira delas, a OAB, surgiu por força de decreto assinado em 1930 por um Getúlio Vargas ainda admirador de Hitler e Mussolini. É justamente com essa herança corporativa que o Brasil precisa romper com urgência.

Hélio Schwartsman, 44, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001.

E-mail:
helio@folhasp.com.br

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