segunda-feira, 17 de março de 2008

Tributos e Cidadania

por Ubiratan Jorge Iorio em 29 de janeiro de 2008
Resumo: Se o Estado só pensa nos deveres e nega os direitos, ou os cumpre precariamente, usando indevidamente a arrecadação, escapa-lhe fundamento moral para cobrar deveres.
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Nestes tempos em que o Estado brasileiro - cuja existência mesma só faz sentido se for para garantir os direitos dos cidadãos – mais parece um feroz inimigo que se compraz em meter a manopla em nossos bolsos já esfarrapados, sem nada, praticamente, nos devolver em troca, em termos de bens e serviços. O fato de nem todo imposto ser justo e nem toda evasão ser injusta, embora óbvio, parece não tocar certas mentes, seja pela crença ingênua de que os governos usam sempre a receita dos tributos para promover o bem comum, seja pelo que Nelson Rodrigues denominava de “cretinice fundamental” - que parece ser o caso explícito de alguns dos que vêm criticando o boicote ao IPTU na cidade do Rio de Janeiro. Com efeito, só um mentecapto de pai e mãe pode censurar o referido movimento sob a alegação de que vem “dos que têm mais”, com a premissa infantil de que João é pobre porque Antônio é rico e que, portanto, o Estado deve tirar de Antônio para dar a João.
Temos, sem dúvida, muito a aprender com os autores da escola que ficou conhecida como Escolástica Tardia, pois seus diversos autores entenderam corretamente que as idéias sobre quais devem ser as funções do Estado exercem forte influência no que diz respeito à legitimidade e ao montante de gastos e receitas do setor público. Para aqueles pensadores, alguns dos quais foram grandes economistas antes mesmo de existir uma ciência econômica, o importante não era tanto o sistema político, mas os direitos e as condições de vida desfrutadas pelos cidadãos. Basta alguns exemplos para, com algum espanto, verificarmos o quanto aqueles autores, que viveram há quatrocentos anos, estavam bem mais próximos da economia do mundo real (embora muitos vivessem em mosteiros) do que a maioria dos economistas keynesianos contemporâneos.
Já em 1597, Pedro de Navarra, bispo de Comenges, escrevia que os impostos são tirânicos não só quando quem os impõe não tem a autoridade (moral) necessária, mas também quando penalizam desigualmente a uns e a outros, e quando sua arrecadação não é utilizada para o bem comum, mas para satisfazer os bens ou as intenções políticas particulares do governante. E acrescentou que, em casos de extrema ou grave necessidade, o povo não tem, em consciência, obrigação de pagar os tributos (De Restitutione, Toledo, 1597, pp. 124-125). São Tomás de Aquino, na Summa Theologica (I-II, q.95, a.2) enfatizava que o que não é justo nunca pode ser considerado lei verdadeira, argumento que remonta a Santo Agostinho, que escrevera que “aquilo que não é justo não pode ser lei” (De Lib. Arb ., i.5). Para São Tomás, uma norma imposta para atender o bem comum tornava-se injusta quando o seu peso deixava de ser igual para todos os cidadãos, afirmando: “mais do que leis, estes são atos de violência” (Summa, I-II, q. 96, a.4). O mesmo Navarra escreveu claramente que o príncipe que usa fundos de impostos para seus interesses pessoais comete um roubo, catalogado como “confisco tirânico e rapina” (Si enin ad privatum finem princeps tributa exigeret, ad imbursanda, vel inutiliter consumenda, esset tyrannica exactio, et rapinna – ibid., p. 135). Pedro Fernández de Navarrete, Capelão do rei de Espanha, em 1619, publicou um livro com medidas para a conservação do reino, em que apontava como grande problema daquele país os altos impostos necessários para sustentar os gastos públicos. E recomendava que “la moderación en los gastos es el mejor médio para engrandecer el Reyno” (Conservación de Monarquias, Madrid, p. 218). O Padre Juan de Mariana, por sua vez, no último capítulo de seu tratado sobre a moeda, assinalou que “el excesivo gasto publico es la causa esencial de la depreciación de la moneda” (Tratado sobre la moneda de Vellón, Rivadeneyra, vol. 31, Madrid, Atlas, 1950, p. 591). Santo Antonino de Florença e São Bernardino de Sena, entre outros, também trataram do assunto com idéias bastante semelhantes a essas.

Cidadão – ensinam os dicionários - é o indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no desempenho de seus deveres para com este. Atenção: deveres e direitos! Se o Estado só pensa nos deveres e nega os direitos, ou os cumpre precariamente, usando indevidamente a arrecadação, escapa-lhe fundamento moral para cobrar deveres. Ora, a classe média – que sustenta os governantes – trabalhou, em 2007, até o dia 5 de junho (156 dias) somente para pagar tributos e, de 6 de junho até 29 de setembro (mais 116 dias) para adquirir serviços privados de educação, saúde, previdência, segurança e pedágio, que deveriam ser ofertados por municípios, estados e União, mas, sistematicamente, não o têm sido, ou, quando têm, é sempre precariamente.

Quando o Antônio de nosso exemplo, que os cretinos fundamentais apontam como o “riquinho que não quer pagar os seus impostos” levou 15 anos para quitar um apartamento que valia, na época da aquisição, digamos, R$ 150 mil e que, atualmente, por conta da violência e da desordem urbana que passaram a assolar o bairro, vale, em termos reais, pouco mais de R$ 100 mil e quando recebe o carnê do IPTU com um aumento real absurdo, o que deve fazer? Resignar-se como um cordeirinho a caminho do matadouro ou fazer valer a sua condição de cidadão? A resposta é óbvia.

O fato - tão lamentável quanto irrefutável - conhecido como o “Paradoxo de Bell”, é que o Estado moderno tornou-se grande demais para resolver os pequenos problemas e pequeno demais para resolver os grandes problemas. A solução não é cobrar mais e mais tributos, mas enxugá-lo, circunscrevendo-o às suas funções clássicas que, por sinal, lamentavelmente, não vem cumprindo.

O boicote ao IPTU deve ser apenas o começo de um verdadeiro movimento de cidadania, apolítico, sem conotações partidárias e de âmbito não apenas municipal, mas também estadual e federal. Só assim, de baixo para cima, pode-se consertar o Estado brasileiro. Não se deve restringi-lo a uma simples implicância ou rebeldia contra o atual prefeito do Rio, pois, se pensarmos direitinho, seus antecessores fizeram o mesmo e se os cidadãos cruzarem os braços, os que se lhe sucederão também o farão. Não se pode ater a críticas ao DEM, pois o governo federal, do PT, e a maioria de prefeitos e governadores, de praticamente todos os partidos, agem da mesma forma, com o fito exclusivo de arrecadar para sustentar a obesidade estatal.

Só cidadãos de verdade podem forçar pacificamente nossos homens públicos a abandonarem tais práticas e a seguirem princípios retos. A esquerda parece ter-se apropriado da palavra “cidadania”, dando-lhe uma feição modificada, naturalmente para atender aos seus interesses. Assim, para muitos, “dar cidadania” a alguém é distribuir cestas básicas ou bolsas isso ou aquilo, ou então montar postos precários de saúde ou de vacinação, ou possibilitar a quem mora em locais isolados a obtenção de um documento de identidade. O verdadeiro sentido da cidadania, no entanto, transcende em muito aquilo que a esquerda costuma propagar. O sujeito pode ser um analfabeto, não possuir RG e até estar passando por enormes dificuldades financeiras, mas, desde que tenha plena consciência de que pode e deve reclamar os seus direitos, é um cidadão.

Parece que o povo de minha outrora maravilhosa cidade, enfim, está acordando de um longo processo letárgico e, embora sem deixar o samba, o carnaval, a cerveja e o futebol de lado, começando a se levantar. Oxalá esse despertar acorde também os demais brasileiros. Mas acredito que, para que isso aconteça, para que seu brado não se limite apenas à antipatia por este ou aquele prefeito, governador ou presidente, terá antes que modificar as idéias que lhe foram incutidas com relação às funções do Estado. Será que o milagre começa a acontecer no Rio de Janeiro?

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